Quando
despedi-me do Viana senti que carregava um vago sentimento de culpa. Então, enquanto
transcorria na Islândia a disputa do campeonato do mundo, entre um americano e
um soviético, como podia eu andar pelas ruas ruminando ideias alheias aos reis,
damas, cavalheiros e bispos do xadrez? Corri ao jornaleiro, na ânsia de me
inserir no momento histórico enxadrístico.
O
leitor, apesar do retrato exageradamente desatualizado que publicam, certamente
sabe que sou mais velho do que este agonizante e desvairado século; mas talvez
não saiba que uma das minhas muitas e ardentes paixões foi o nobre jogo de
xadrez. E aqui repito a ênfase do título, em homenagem ao autor do primeiro
livro em que estudei, aos treze ou catorze anos, os rudimentos do jogo que François
André Danican-Philidor sempre chamava de ‘le noble jeu d’echecs’. Como em geral
se começam todas as coisas, comecei em casa vencendo mãe, padrasto, irmãos e
agregados. Depois, já na Escola Politécnica, descobri o Clube de Engenharia e
conheci os mestres da época: Caldas Viana, Raul de Castro, Barbosa de Oliveira,
cujos sestros nos levaram a dizer que ele rocava os olhos, e João Mendes Júnior
que me ajudou a galgar os primeiros degraus da carreira. Cheguei a jogar sem
partido com a primeira turma, e por volta de 1920, se não me falha a memória,
teria sido campeão do Brasil se não tivesse abandonado um torneio em que já
tinha quinze vitórias sem nenhuma derrota. Justamente quando já poderia dizer,
como Corregio, ‘anch’io sono pittore’, isto é, enxadrista, deixei o xadrez e o
clube. Ouvi nestes dias várias histórias das explosões temperamentais de Bob
Fischer, que me parecem mais humanas do que a gélida placidez do adversário
soviético que, antes de qualquer manifestação de mau humor, tem de consultar
Moscou.
O
leitor, se não é enxadrista, talvez não saiba que o nobre xadrez é o mais apaixonante
e enervante de todos os jogos. Poderíamos encher uma biblioteca com enciclopédias
de agastamentos, reclamações e brigas em torno desse jogo aparentemente inventado
por e para homens fleumáticos.
E explica-se
bem a força de exasperação escondida naquelas figuras imóveis, e naqueles
jogadores de fisionomias impenetráveis. O xadrez é o único jogo onde cada um
joga numa total solidão, e não pode contar com nenhum fator de sorte, a não ser
num eventual e discreto derrame no parceiro. O próprio jogo, em si mesmo, é o
menos físico dos jogos, o menos aleatório. Cada jogador é senhor absoluto de
suas peças. É uma espécie de deus defrontado por outro deus. E não há, para o
homem, situação mais inconfortável. A vida, a larga e espaçosa vida, nos seus
piores momentos sempre nos proporciona ao menos esta saída: a de
responsabilizar o irmão, a mulher, o sogro, o vizinho e as coisas irracionais,
e até as inanimadas, por nossos insucessos. A culpa é de... e por esta fresta
descarregamos nossas tensões internas.
O xadrez
não permite esse bálsamo. Implacavelmente sou eu mesmo, dentro de todo o
universo, o único culpado de ter jogado o lance incorreto C5B em vez de B3C.
Não posso culpar ninguém, não posso queixar-me de nada. Não posso sequer
insinuar uma perfídia. Nada. Implacavelmente, o tabuleiro de xadrez me
acorrenta na solidão total de uma derrota tecida por minhas próprias mãos.
Além
disso, como se não bastasse tal peculiaridade, o jogo de xadrez exige do bom
jogador uma atitude ainda mas tensa e mais dificilmente tolerável: diante de
suas peças arrumadas na posição inicial o jogador deve defender-se de qualquer
desejo próximo de ganhar. Ele deverá começar seu jogo: P4D, C3BR etc. etc...
sem o menor desejo de ganhar. Que objetivo têm então os lances do jogador?
Simplesmente o de potencializar as peças em seu conjunto posicional. Ele joga
sempre com esse único e depurado objetivo, até perceber que o adversário, no
seu desenvolvimento, produziu um ponto fraco, indicador de todo um plano
errôneo, ou isoladamente fraco. Deste momento em diante o jogador deixa de ser
um organizador, um capitalizador, e se transforma num lutador, ou num caçador
que, com crueldade crescente, persegue a fraqueza, para transformá-la em ruína
total do inimigo. Paralelamente, e na mesma proporção que cresce a agressividade
do jogador que sente os pontos fracos do adversário, cresce neste a convergência
de todos os esforços na neutralização daquela ferida. Um quer matar, o outro quer
sobreviver. E, em torno de um tabuleiro com bonequinhos de madeira, dois homens
feitos à imagem e semelhança de Deus realizam a máxima concentração de desejo e
atenção, como se ali, naquele momento, estivessem em jogo a honra, a saúde, a
felicidade e a vida eterna.
O jogo
de xadrez é uma experiência que nos permite aquilatar a terrível e maravilhosa
capacidade que tem o homem de buscar a perfeição máxima numa coisa
evidentemente irrelevante. Será uma loucura o que fazem Fischer e Spassky na
Islândia? Não. A seu modo, e em estilo desconcertante, ambos glorificam o
homem, e por conseguinte glorificam a Deus.
(Gustavo
Corção)
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