"Dois
amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao
desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a
celestial." (A
cidade de Deus. Santo Agostinho)
“Acaso é inútil tudo aquilo que não nos põe de
pronto dinheiro nos bolsos, que não nos proporciona um patrimônio imediato?” (Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Johann
Wolfgang von Goethe)
1. A partir da ideia de Santo
Agostinho, que Gustavo Corção seguiu e desenvolveu em "Dois amores –
duas cidades", assinalando a prevalência do materialismo na
civilização moderna (em que inserimos também a pós-moderna ou contemporânea),
em detrimento da metafísica, do homem espiritual, do homem interior, prevalecente
nas civilizações antiga e medieval, pretendemos demonstrar a artificialidade
dos conceitos contemporâneos de "direitos sexuais" e de
"famílias". Procuraremos evidenciar que os conceitos de
"direitos sexuais" e de "famílias" possuem matriz
materialista, consubstanciada em correntes de pensamento de fundo ateísta,
agnóstico ou deísta, sobressaindo o neomarxismo, o liberalismo político e o
utilitarismo. Será nosso objetivo, ainda, sustentar que tais correntes de
pensamento fornecem visões parciais e reducionistas do ser humano, dando azo à
manipulação ideológica da definição dos direitos humanos, isso sem falar em que
o laboratório em que foram produzidas foi o ambiente de experimentação burguês.
I
– O CONCEITO MARXISTA DE FAMÍLIA DE RODRIGO DA CUNHA PEREIRA
2. Rodrigo da Cunha Pereira,
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), renomado
especialista em Direito de Família, elabora a sua crítica ao modelo tradicional
de família a partir de Friedrich Engels, Marx, Freud, Claude Levi Strauss e
Jacques Lacan. Entreguemos-lhe a palavra:
"A
partir do Século XIX, muitos pensadores começaram a levantar teorias sobre a
origem do patriarcado. Alguns afirmaram, e ainda afirmam, que o domínio
masculino sobre o feminino é da natureza. Que, naturalmente, os machos são
dominadores. Mas os pensadores mais importantes que mais convenceram neste
aspecto o pensamento contemporâneo foram Marx e Engels. Eles
demonstraram que a divisão sexual do trabalho dava origem a uma divisão social
do trabalho, levando ao aperfeiçoamento das tecnologias, dando origem ao
excedente (lucro). Tais excedentes, usados como valores de troca, originaram
uma classe dominante que, vivendo destes excedentes, escravizou, criou a
propriedade privada, em detrimento da comunidade. Segundo Engels, nessa
época o sexo feminino é dominado e reduzido ao âmbito privado, para fornecer o
maior número de filhos para produzir mais, defender a terra e o Estado. A
supremacia masculina surge, pois, com a cultura competitiva do excedente, em
que as mulheres vão pouco a pouco sendo dominadas para que possibilitem
produzir mais riqueza. Instalada a divisão sexual do trabalho, nasceu o patriarcado."[1]
3. Consoante Cunha Pereira, a
família patriarcal, a primeira pela qual o direito teria se interessado, possui
origem na luta de classes. A primeira classe dominada foi a das mulheres, pois
elas, na antiguidade, eram responsáveis pela produção da mais-valia apropriada
pelos varões. Não obstante, com a devida vênia ao douto doutrinador, a
explicação marxista da história não é verossímil, chegando mesmo a ser curiosa.
O homem antigo já teria elaborado toda uma estrutura social de dominação para
expropriar das mulheres o fruto do seu trabalho, mesmo antes de se dar conta da
existência de uma estrutura social.
4. Para negar que a família
seja uma organização natural e que homem e mulher possuam papéis diversos e
complementares na ordem natural, o autor citado lança mão da cosmovisão
marxista, com o maniqueísmo da luta de classes que a caracteriza. Todavia, uma
vez mais, não se afigura verossímil que o homem antigo seja a própria
encarnação do mal. A nosso ver, não existe base teórica ou científica para
afirmar-se que, enquanto o homem antigo seja a personificação do mal, a mulher
seja a encarnação do bem. Tal distinção, artificiosa, é completamente
arbitrária.
5. Nota-se, claramente, que
Cunha Pereira adota uma interpretação burguesa da história. Transpõe o mundo
burguês para o mundo antigo. O homem antigo nem sequer poderia ter imaginado
ouvir falar em capitalismo; não obstante, ávido por riqueza – mesmo antes de
existir moeda –, já consistiria em um capitalista cruel.
6. As famílias eram numerosas
simplesmente porque os métodos anticoncepcionais ainda não existiam. Todavia, o
autor quer sustentar que a prole numerosa visava exclusivamente à produção da
mais-valia. É evidente que essa interpretação da história não somente não se
sustenta, como transpõe para o homem antigo uma consciência e realidade próprias
do homem burguês. Há nela confusões lógica, cronológica e terminológica.
7. Preferimos outorgar a
origem da família a uma necessidade natural do ser humano, de que as
instituições religiosas eram um reflexo eloquente. As principais instituições
humanas, inclusive as regras basilares de direito, têm nascedouro intimamente
vinculado à prática e às normas religiosas. Durante muito tempo, confundiram-se
as normas religiosas com as regras de direito. Não foi de imediato que o homem
se deu conta da autonomia científica do direito. Mas isso não exclui o papel
que o sentimento religioso desempenhou no revelar ao homem o direito. O
direito, a família e o casamento decorrem da própria natureza humana, que se reflete
e se revela nas regras e instituições religiosas. Tenhamos em mente as seguintes
considerações de Fustel de Coulanges, que contradizem afirmações de Rose Marie
Muraro – feminista laureada, parceira de Leonardo Boff no livro Masculino
& Feminino, citada por
Cunha Pereira[2] – segundo
as quais a mulher estava excluída da religião antiga:
"A
primeira instituição estabelecida pela religião doméstica foi, de fato, o
casamento.
Notemos
que essa religião do lar e dos antepassados, transmitindo-se de varão para
varão, não pertenceu exclusivamente ao homem, pois a mulher também tomava parte
no culto. Como filha, a mulher assistia aos atos religiosos do pai; depois de
casada, aos do marido.
Só
por isso podemos avaliar o caráter essencial do matrimônio entre os antigos.
Duas famílias, vivendo uma próxima da outra, têm deuses diferentes. Em uma
delas, a jovem participa, desde a infância, da religião do pai; invoca o seu
lar [deus];
oferece-lhe libações diárias, cerca-o de flores e de grinaldas nos dias
festivos, pede-lhe proteção, agradece-lhe os benefícios. Esse lar paterno é o
seu deus. Se, porém, um rapaz da família vizinha a pede em casamento, trata-se,
para ela, de algo bem diferente do que passar de uma casa para outra. Trata-se
de abandonar o lar paterno, para invocar dali em diante o lar do esposo.
Trata-se de mudar de religião...".[3]
8. Cumpre notar, porém, a
insistência com que o Presidente do IBDFAM sustenta a lógica da expropriação na
origem do patriarcado:
"Engels, um
dos autores que melhor escreveu [gostaríamos
de saber com base em que o autor pressupõe isso] sobre a origem da monogamia
e sua introdução no cenário da Idade Antiga, Média, Moderna e Contemporânea,
nos diz que a monogamia entra na História não como uma forma mais elevada do
matrimônio e não é também uma reconciliação entre o homem e a mulher. Ela surge
sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, aplacando um conflito,
ignorado na pré-história, mas principalmente para garantir que a paternidade
seja indiscutível e que os filhos na qualidade de herdeiros terão assegurada a
transmissão da herança."[4]
9. Sublinhe-se que Cunha
Pereira ignora a estreita vinculação do grupamento familiar e do patriarcado
com a prática religiosa, de modo a querer atribuir-lhes uma explicação
puramente materialista. Seria o caso de advertir o autor de que o materialismo
ainda não existia, de modo que não é razoável atribuir ao homem antigo o
exercício da prática religiosa com o escopo exclusivo de alienar e explorar a
classe dominada. Imbuído de sua lógica materialista, o autor não consegue
enxergar finalidades espirituais ou metafísicas na religião: está patente a sua
obsessão pela luta de classes, como clave única para interpretar a história.
Demais disso, ele pressupõe, mas não demonstra, a razão pela qual Marx e Engels
teriam fornecido a interpretação mais convincente a respeito da origem da
família monogâmica e do casamento.
10. Em sentido diametralmente
oposto ao de Cunha Pereira, e de forma muito mais convincente, afirma Fustel de
Coulanges:
"A instituição
do casamento sagrado deve ser tão antiga na raça indo-européia como a religião
doméstica, porque não se verifica uma sem a outra. Esta religião ensinou ao
homem que a união conjugal é bem mais que a relação de sexos ou o afeto
passageiro, unindo os dois esposos pelo laço poderoso do mesmo culto e das
mesmas crenças. A cerimônia das núpcias era, além disso, tão solene, e produzia
efeitos tão profundos, que não nos devemos surpreender se esses homens julgavam
não ser permitido nem possível ter-se mais do que uma mulher. Essa religião não
podia admitir a poligamia.
É bem
compreensível que semelhante união fosse indissolúvel e tornasse o divórcio
quase impossível."[5]
11. Estamos falando do casamento
cristão-católico? Não.
12. Não somente a Rodrigo da Cunha
Pereira, mas a pensadores da Escola de Frankfurt, notadamente a Herbert
Marcuse, as teses psicanalíticas de Freud pareceram as mais apropriadas para
fornecer uma explicação marxista da cultura e da sociedade, isto é, para fazer
o marxismo transpor o âmbito estritamente econômico. Para Marcuse, a
civilização ocidental fundamenta-se na repressão, que permite a manutenção do status
quo de alienação do produto do trabalho em prol do capitalista:
"O conceito
de homem que emerge da teoria freudiana é a mais irrefutável acusação à
civilização ocidental – e, ao mesmo tempo, a mais inabalável defesa dessa
civilização. Segundo Freud, a história do homem é a história da sua repressão.
A cultura coage tanto a sua existência social como a biológica, não só partes do
ser humano, mas também sua própria estrutura instintiva. Contudo, essa coação é
a própria precondição do progresso. Se tivessem liberdade de perseguir seus
objetivos naturais, os instintos básicos do homem seriam incompatíveis com toda
a associação e preservação duradoura..."[6]
13. A propósito, acrescenta Cunha
Pereira:
"A
investigação antropológica de Freud permitiu-lhe concluir que 'os
começos da religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o Complexo
de Édipo'. E o Complexo de Édipo nada mais é que a 'Lei do Pai' (Lacan),
ou seja, a primeira lei do indivíduo e que o estrutura enquanto sujeito e lhe
proporciona o acesso à linguagem e conseqüentemente à cultura.
...........................................................................................................................
Essa obra veio
demonstrar, como já se disse, que o incesto é a base de todas as proibições. É
então a primeira lei.
É a lei fundante e estruturante do sujeito e, conseqüentemente, da sociedade
e, portanto, do ordenamento jurídico. É somente a partir dessa primeira lei,
quando o indivíduo teve acesso à linguagem, que pôde perceber, com a proibição,
que existiam outros totens e fazer nascer a cultura.
...........................................................................................................................
E assim podemos
dizer que é exatamente porque existe a interdição do incesto, que o homem é
marcado pela 'Lei do Pai', que se torna possível e necessário fazer as leis da
sociedade onde ele vive, estabelecendo o ordenamento jurídico."[7]
14. É necessário dizer que, para
Freud, os interditos e as proibições, a repressão sexual, são a origem de todas
as neuroses humanas. Além disso, para Cunha Pereira, a evolução das sociedades
atuais, sobretudo com a valorização da mulher, não mais se compadece com a
estruturação da civilização em torno da Lei do Pai. As interdições em matéria
sexual não seriam naturais, mas meramente culturais. Entretanto, Cunha Pereira
sustenta que a interdição do incesto é a origem da civilização e do ordenamento
jurídico.
15. Com muito mais razão, porém, o
antropólogo finlandês Edward Westermarck, autor da monumental História do
casamento, evidencia que o
convívio familiar, a intimidade sobre o mesmo teto, cria, naturalmente, mesmo
entre não consanguíneos, a diminuição do desejo sexual.
16. Em reforço da sua tese,
Westermarck menciona o caso de crianças israelenses sem laços biológicos
criadas em kibutzim, espécie de
fazendas coletivas. Westermarck demonstrou que a convivência sobre o
mesmo teto cria, quando pelo menos um dos indivíduos é pequeno, naturalmente,
espontaneamente, uma verdadeira repulsa sexual. A essa descoberta, que joga por
terra o mitológico Complexo de Édipo e a Lei do Pai, deu-se o nome bem concreto
de efeito Westermarck.
17. Talvez o raciocínio de Freud
se aplique com o seguinte temperamento: a repressão anormal, antinatural, ao
indivíduo é fonte de neuroses. Não é necessário que a repressão seja de caráter
sexual, no que, evidentemente, a teoria de Freud é reducionista, quer explicar
tudo a partir da sexualidade. Ocorre que a repulsa ao incesto é natural, surge
da intimidade do convívio familiar e não por qualquer mecanismo social
repressor, não sendo fonte de neurose alguma, muito menos de neurose coletiva e
de expropriação. No particular, a teoria de Freud é uma ficção insustentável, prestando-se
indevidamente a servir de suporte a outras tantas teorias insustentáveis.
18. Como se viu, o homem antigo
era essencialmente religioso, como reforça Gustavo Corção, seguindo a doutrina
dos dois amores. É impossível dissociar da gênese da instituição humana casamento o caráter religioso que lhe
era essencial. Pretender transformar o homem antigo em um burguês ateu ou
agnóstico do século XIX constitui erro histórico crasso e deturpação ideológica
da origem do fenômeno casamento. A isenção e a imparcialidade históricas de
Cunha Pereira ficam claramente comprometidas pelo fato de ele tentar explicar a
realidade com uma lógica reducionista, espremendo aquela para dentro dos
conceitos marxistas.
19. Também se patenteia que o
pressuposto fundamental a partir do qual o jurista ora estudado estrutura todo
o seu pensamento – a naturalidade do incesto, é completamente equivocado, visto
a naturalidade colocar-se exatamente do lado oposto: é natural dentro do
ambiente e da intimidade familiar a diminuição do desejo sexual, quando pelo
menos um dos indivíduos é criança. Para corroborar isso, isto é, a
antinaturalidade do incesto, bastaria que nos socorrêssemos de lições elementares
de genética, que demonstram ser ele fonte de graves patologias hereditárias e
de enfraquecimento da descendência. Não houvesse a interdição do incesto, muito
possivelmente não estaríamos aqui hoje.
20. Há quem diga que o modelo de
família tradicional é burguês. Tal afirmação não encontra alicerce histórico.
Como se percebe, o modelo da família tradicional é muito anterior ao advento da
burguesia. Os novos modelos de família, fundamentados em novas interpretações
da história, sim, é que são burgueses.
II – O BURGUESISMO
CANDENTE NO DISCURSO DOS DIREITOS SEXUAIS
21. Amparados em concepções de
mundo burguesas são igualmente os conceitos de direitos sexuais defendidos por Roger Raupp Rios, José Reinaldo de
Lima Lopes, Paulo Gilberto Cogo Leivas, Roberto Arriada Lorea, Miriam Ventura,
Samantha Buglione (todos eles co-autores do livro Em defesa dos direitos sexuais, Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2007) e Maria Berenice Dias (Manual
de Direito das Famílias). Alguns autores possuem marcada posição marxista, como
Roger Raupp Rios e Maria Berenice Dias. José Reinaldo de Lima Lopes segue na
linha do utilitarismo de John Stuart Mill. Paulo Gilberto Cogo Leivas adota o
liberalismo político. O denominador comum em relação a todos esses autores é o materialismo,
a hostilidade fundamental ao sentimento religioso ou, simplesmente, a uma
concepção metafísica do ser humano. Em outras palavras, há uma vinculação
genética entre todos esses conceitos. Se sujeitarmos ao teste de paternidade
todas essas teorias, o pai será o mesmo: o ambiente burguês com a sua aversão
congênita à metafísica.
22. Os defensores da ideologia
dos direitos sexuais – não se trata de verdadeiros direitos humanos, mas de manipulação
ideológica do conceito de direitos humanos – não disfarçam a sua ojeriza à
concepção cristã de família e de casamento. Entretanto, claro está que se
equivocam atribuindo a concepção do modelo tradicional de família ao
cristianismo. É certo que o cristianismo, que possui nítido valor
antropológico, contribuiu para a compreensão da ideia de família e para a
valorização da mulher, por exemplo, com o culto à Virgem Maria, considerada a
criatura mais elevada, mais próxima da Divindade. Todavia, pela referência que
fizemos ao casamento sagrado romano, tal como o relata Fustel de Coulanges,
nota-se que a gênese do matrimônio, a sua nota de indissolubilidade e a
monogamia estavam intimamente vinculadas ao sentimento religioso, mesmo não cristão,
que nada mais traduzia do que a realidade essencial do casamento, como
instituição natural ao ser humano, tal como a própria religião. Em outras
palavras, o sentimento religioso revelou a própria natureza das coisas.
23. Frise-se bem: como a maior
parte dos defensores dos direitos sexuais é partidária da ideologia marxista, as
ideias de luta de classes e de opressão são dirigidas também contra as supostas
instituições responsáveis pela manutenção do regime repressor. Nesse sentido, a
concepção cristã-católica de família passa a ser vista, numa interpretação
marxista da história, como uma forma de impor-se a ideologia de dominação, de
favorecer a exploração de uma classe por outra. As “minorias” são vistas como
verdadeiros explorados, material, social e culturalmente.
24. Trata-se de nova forma de
maniqueísmo. Aliás, tanto no marxismo como no liberalismo, que acabaram por
transpor os limites das teorias econômicas, o maniqueísmo está presente. No
marxismo, o opressor é a classe dominante, e o oprimido, o trabalhador e as
minorias. No liberalismo, o opressor é o Estado, e o oprimido, o indivíduo, o
burguês, com a sua liberdade.
25. Enganam-se os que pensam que
marxismo e liberalismo sejam antagônicos. Marxismo e liberalismo são irmãos
gêmeos, filhos da moral burguesa e da civilização do homem exterior, como
esclarece Gustavo Corção:
“Foi no ambiente da moral burguesa da civilização
ocidental dos últimos séculos que ganhou vulto essa concepção que se
caracteriza pela valorização do homem-exterior e dos bens materiais que formam
a ganga do Homo-Oeconomicus.
Muita gente se engana pensando que essa
concepção do homem foi trazida ao mundo pelo marxismo: ao contrário, foi ela
que trouxe o marxismo ao mundo. Pode-se fazer um esquema que indica a
germinação das duas concepções da vida que parecem antagônicas, mas que de fato
têm origem comum na moral burguesa, ou moral do homem-exterior, como veremos a
seguir:
Moral
do homem exterior – Homo Oeconomicus
Sociabilidade
fundada na penúria do indivíduo
Sociedade
competitiva
Individualismo Coletivismo
Capitalismo Socialismo
Liberalismo Estatismo”[8]
26. Ocorre que as correntes
filosóficas que valorizam a metafísica levam real vantagem sobre as concepções
materialistas do homem, nitidamente insuficientes para explicar a própria origem
e existência do sentimento religioso e de instituições humanas que nasceram
junto à religião. A metafísica permite-nos ter uma ideia completa do ser
humano, da sua realidade física e espiritual, enquanto que o marxismo, o
liberalismo, o utilitarismo e o pragmatismo são incapazes de explicar o homem
em sua inteireza, desconhecendo a sua realidade espiritual. Doutrinas de fundo
ateísta e agnóstico duvidam da sinceridade do sentimento religioso, presente no
mundo desde que o homem é homem. Por isso, formulam explicações maniqueístas
sobre a origem da religião, do direito e da moral. Em outras palavras, o
materialismo moderno afastou a filosofia de algo essencial à construção do
saber filosófico, em grande parte revelado ou insinuado pelas religiões
positivas, que não deixam de trazer contribuições antropológicas: o senso comum.
27. Nesse sentido, vem a crítica
de Gilbert Keith Chesterton:
“Desde o início do mundo moderno, no século XVI,
nenhum sistema de filosofia correspondeu realmente ao sentido comum das
realidades, aquilo a que os homens normais, se os deixassem entregues a si
mesmos, chamariam senso comum. Cada um partia de um paradoxo, um ângulo
particular que exigia o sacrifício do que se chamaria um ângulo sensato.”[9]
28. Ora, está evidente que a
filosofia moderna deixa de fazer-se as principais perguntas sobre o ser humano,
construindo fora dos alicerces democráticos do senso comum, os edifícios
abstratos das suas teorias. O filósofo moderno sente-se uma espécie de iluminado.
Ele menospreza o senso comum, acessível a qualquer ser humano normal, como
primeiro fundamento da construção do saber filosófico. O homem moderno quer desenvolver
o saber filosófico a partir de uma ideia, de uma revelação, de um dogma: a sua
singular visão de mundo.
29. Por isso, não basta ao
moderno que lhe demonstremos que o casamento monogâmico, entre homem e mulher,
e indissolúvel, fundamenta-se no senso comum, em parte revelado pelas religiões
positivas com a sua vasta experiência antropológica, senso comum este segundo o
qual o matrimônio decorreria de uma necessidade humana real. Não é bastante
mostrar-lhe, ao moderno, que a monogamia e a indissolubilidade asseguram a
igualdade entre os esposos e a estabilidade do lar conjugal. É insuficiente
argumentar que tais características fornecem estabilidade psíquica e afetiva não
apenas aos cônjuges, mas à prole, que delas necessita para desenvolver-se de
modo equilibrado. De nada adianta argumentar com a real complementaridade
física, afetiva e psíquica entre homem e mulher, indispensáveis para a sua
realização pessoal e para a formação dos filhos.
30. Para o moderno, o confronto
com a realidade não desmente a sua teoria. Se a realidade desmente a teoria, o
orgulho moderno diz que a realidade e o senso comum é que estão errados, não a
teoria. Disso se apercebeu Dostoiévski, em Memórias
do subsolo:
“Mas o homem é a tal ponto afeiçoado ao seu sistema
e à dedução abstrata que está pronto a deturpar intencionalmente a verdade, a
descrer de seus olhos e seus ouvidos apenas para justificar a sua lógica.”
31. Muitos pensadores modernos
sacrificam o senso comum, em favor do seu senso singular. Ocorre que as
instituições religiosas – tal como o casamento, com suas notas características
– possuem significado antropológico evidente, que não pode ser negligenciado. O
sentimento religioso revela em grande medida o que está no senso comum, o que
é, em realidade, o homem, suas necessidades e seus fins.
32. Preconizando o realismo
aristotélico-tomista, argumenta Chesterton:
“Em outras palavras, Santo Tomás é um antropólogo,
com uma teoria completa do homem, certa ou errônea, mas uma teoria. Ora, os
antropólogos modernos, que se consideram a si mesmos agnósticos, falharam
inteiramente como antropólogos. Dadas as suas limitações, não puderam alcançar
uma visão completa do homem nem, muito menos, uma visão completa da natureza.
Começaram por pôr de lado o que chamaram o incognoscível. Se pudéssemos, em
verdade, tomar o incognoscível no sentido de perfeição última, quase se
compreenderia ainda essa incompreensibilidade. Mas logo se verificou que todas
as coisas que se tornaram incognoscíveis eram exatamente as que o homem tinha
mais necessidade de conhecer. É preciso saber se o homem é responsável ou
irresponsável, perfeito ou imperfeito, perfectível ou imperfectível, mortal ou
imortal, escravo ou livre, não para compreendermos a Deus, mas para
compreendermos o homem. Nenhum sistema que deixe estas coisas sob a nuvem da
dúvida religiosa pode pretender-se uma ciência do homem: encontrar-se-ia tão
longe da teologia como da antropologia.”[10]
33. A
nossa convicção é a de que o tomismo, a sua concepção de ser humano e de lei
natural, com a valorização do senso comum e da realidade, pode fornecer uma
explicação mais exata e completa de direitos humanos e de família.
III – A LEI
NATURAL
34. Muitos confundem o
jusnaturalismo abstrato, ou jusracionalismo, com o direito natural no seu
sentido objetivo ou clássico. Santo Tomás afirma que a lei natural, o direito
natural, é a verdadeira fonte do direito positivo. Modernamente, cremos não ser
equivocado dizer que a fonte do direito positivo são os direitos e os deveres
humanos, algo devido ao homem, precisamente por ser homem, ou algo a que o
homem está obrigado perante os outros homens, precisamente por serem homens.
35. Para ilustrar bem a ideia de Santo
Tomás, tomando de empréstimo de Kelsen a sua norma hipotética fundamental (“devemos obedecer ao pai da constituição”),
diríamos que a verdadeira norma fundamental não é hipotética, mas real: a Constituição deve obedecer à lei natural.
36. Normalmente se objeta serem a
lei natural ou o direito natural excessivamente vagos ou abstratos. Isso se
explica por duas razões principais. A primeira: o homem moderno perdeu e
menosprezou algo que os pensadores antigos e medievais tinham em grande conta:
o senso comum. Ele despreza as coisas óbvias apreendidas diretamente pelos
sentidos. A outra, as teorias racionalistas que pretenderam ser o direito
natural algo abstrato, somente encontrável no homem ideal, em estado puro, no
estado de natureza. As teorias contratualistas dos primeiros liberais viam os
direitos naturais como abstrações, tal qual o contrato social ou o homem no
estado de natureza. As teorias racionalistas causaram um desgaste no conceito
de direito natural.
37. Em contraposição a isso,
deve-se frisar que o direito natural é sempre atual, que a lei natural está
sempre presente enquanto o homem é homem. Em oposição às abstratas teorias
contratualistas sobre a origem do Estado, diga-se que o Estado é uma
necessidade natural do ser humano, que precisa organizar o convívio social e
necessita de ordem e hierarquia dentro do grupamento humano.
38. Quando se objetar que a lei
natural é excessivamente vaga, demonstre-se que uma carga tributária excessiva,
que priva o homem do essencial para a sua subsistência, fere a sua dignidade e
viola o seu direito a uma existência digna.
39. Santo Tomás distinguia os
papéis da lei natural e da lei positiva. A lei natural é geral e universal, pelo
menos em seus preceitos (ou princípios) primeiros, tal como os direitos
humanos. Na verdade, compreende-se que a lei natural são os próprios direitos
humanos. A lei positiva detalha, atualiza, operacionaliza a lei natural no
momento histórico em que ela será aplicada. Por certo, como o conhecimento
humano é cumulativo, ao longo da história, o homem vai tomando consciência cada
vez maior da lei natural, dos direitos humanos. Cabe-lhe dar aplicabilidade
prática à compreensão que tem da lei natural em determinado momento histórico.
40. Os conceitos de direitos
sexuais e reprodutivos estão claramente marcados pela ideologia feminista. Esta
fundamenta-se ora na lógica marxista da opressão e da luta de classes ora em um
liberalismo radical. A primeira luta de classes teria sido, em verdade, uma
luta de gêneros. Com a invenção dos métodos anticoncepcionais, começou-se a
sustentar que as mulheres encontraram a sua independência real. Que o seu papel
de mães teria sido socialmente construído e não naturalmente fornecido.
41. Ainda que as concepções
marxistas possuam algo de verdadeiro, pois dificilmente uma doutrina é
inteiramente falsa, fato é que, na essência, destoam, contrariam, afastam-se
muito do senso comum. O instinto materno e o papel da mulher no seio da família
não são socialmente construídos, não são culturalmente determinados. Os papéis
do homem e da mulher no tecido social são naturalmente distintos; nossos
sentidos demonstram que homem e mulher possuem características diversas, até
físicas, não obstante participem ambos da mesma dignidade, da mesma natureza de
ser humano.
42. Por igual, também não se pode
dizer que exista um gênero homossexual. Isso também não encontra suporte no
senso comum, na consideração sensata da realidade sobre o ser humano. Os
ideólogos dos direitos de opção ou orientação sexual preconizam que, como os
papéis sexuais são social e artificialmente construídos por uma civilização
repressora fundada na busca da mais-valia, na verdade, a homossexualidade, não
fosse a lógica repressora, equivaleria à heterossexualidade. Por aí se vê,
novamente, o que vimos sustentando: a lei natural, os direitos humanos, não
comportam interpretações – manipulações – ideológicas. A ideologia sempre se
baseia em um senso particular, singular, reducionista da realidade. Ela é
sempre parcial. Somente o senso comum, com a sua natural abertura à totalidade
do ser humano, pode fornecer com segurança luzes neutras sobre os direitos
inalienáveis dos seres humanos, e não somente das mulheres, e não somente dos
homossexuais, e não somente dos bissexuais, e não somente dos índios, e não
somente dos idosos, e não somente dos deficientes.
43. Indício claro de que se está
sacrificando o senso comum em benefício do senso singular, ou parcial, é a
tendência de distinguir entre seres humanos, de tomar partido de uns em
detrimento de outros, de conceder direitos “humanos” especiais ou exclusivos a
mulheres (como o de matar seus filhos nascituros), a homossexuais (o de não
verem questionado o seu estilo de vida, mesmo com sacrifício da liberdade de
crença da grande maioria), a negros, a deficientes, a índios. Ora, a própria
noção de direitos humanos não se compadece com a ideia de direitos exclusivos
das mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos deficientes e dos índios. Os
direitos humanos, ou direitos naturais, são comuns a todos os homens, a todo o
gênero humano. Visões parciais de mundo não são aptas a engendrar com sensatez
concepções de direitos humanos.
IV – A LÓGICA
MATERIALISTA POSSUI FINS MATERIALISTAS
44. Há quem sustente, a nosso
ver, com razão, que por trás da ideologia dos direitos sexuais exista o
propósito de controlar a demografia nos países em desenvolvimento. Sabe-se que
a difusão do aborto, e crê-se que a difusão do casamento homossexual, são meios
eficazes de controle da natalidade. Seria estranho pensar que a Fundação
Rockfeller, a Fundação MacArthur e a Fundação Ford, que tanto se engajam nessa
causa – é difícil encontrar uma única iniciativa nessa temática em que alguma
delas não se envolva de alguma forma, incluídos trabalhos de Marcuse e o livro Em defesa dos direitos sexuais acima
citado –, estejam voltadas para objetivos altruístas, metafísicos. Talvez seja
o caso de analisar, a partir do seu próprio critério de interpretar a história,
os seus motivos, os meios empregados e os seus objetivos reais.
45. São ilustrativos os seguintes
esclarecimentos:
“Apesar destas interpretações, não existe atualmente
nenhum texto internacional sobre direitos humanos que formule, de modo
explícito, os direitos reprodutivos. Encontra-se somente o reconhecimento, em
instrumentos jurídicos nacionais e internacionais, de faculdades relativas à
procriação humana, à família e à vida. Porém, tais faculdades estão longe de
ser unanimemente reconhecidas na ótica sustentada pelos promotores dos DDSSRR [direitos
sexuais e reprodutivos].
Para preencher este vazio, o IPPF [International
Planned Parenthood Federation] elaborou e
propôs uma Carta dos assim chamados DDSSRR, com a intenção de aplicar os
documentos conclusivos da Conferência da ONU no Cairo (1994) e em Pequim (1995)
a que já acenamos. (...) Mesmo se o IPPF apresenta a própria hermenêutica dos
direitos reprodutivos como se se tratasse da hermenêutica da ONU, na realidade
ela corresponde a uma visão ideológico-política muito particular (...).
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Como é sabido, o IPPF foi criado em 1952, com sede
central em Londres e com organizações afiliadas – Associações de Planejamento
Familiar (APF) – em cento e quarenta países. É a organização não governamental
mais potente e influente a promover o controle demográfico mundial. Seu balanço
supera os cem milhões de dólares e suas fontes de entrada são tanto os Estados
– principalmente a Grã Bretanha – quanto entidades privadas, como as fundações
norte-americanas Ford, Rockefeller, Hewlett e MacArthur. Suas ações refletem
uma ideologia liberal ‘radical’ ou ‘absoluta’ e usam esta Carta como
instrumento para difundir algumas liberdades; não se trata, porém, de simples
liberdades negativas – onde o Estado não intervém – mas, ao contrário, de
direitos positivos, exigências diretas ao Estado por parte de indivíduos, que
procedem com uma lógica de ‘clientes’ e não de ‘pacientes’.”[11]
46. Talvez o senso comum nos
ajude a descobrir porque, em benefício de uma peculiar ou singular visão de
mundo, pedem-nos para sacrificar o nosso juízo e o que os sentidos de todos os
homens normais do mundo podem descobrir pela simples e serena observação da
realidade, ajudados pelo conhecimento antropológico colhido pela experiência
religiosa.
Publicado no "Migalhas" e no "Jus Navigandi"
BIBLIOGRAFIA:
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Tradução e notas de Carlos Ancêde Nouguê. São Paulo: LTr, 2003.
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Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
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Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família.
Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
PONTIFÍCIO
CONSELHO PARA A FAMÍLIA. Lexicon: Termos
ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. Brasília: Edições
CNBB, 2007.
[1] Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2.
ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 81-2.
[2]
Op. cit., p. 82.
[4] Princípios fundamentais
norteadores do direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 116.
[5] Op. cit., p. 51-2, com o esclarecimento de que o direito romano
admitia, segundo Coulanges, formas de casamento não religioso, embora o
casamento sagrado fosse o mais antigo.
[6] Eros e Civilização. Uma Interpretação Filosófica do
Pensamento de Freud. 8. ed. Rio de Janeiro: Guanabara. p. 33.
[7] Direito de Família. p.
19-21.
[8] Dois amôres – duas cidades. 1. Na Antiguidade e na Idade Média. Rio
de Janeiro: Agir, 1967. p. 29.
[9] Santo Tomás de Aquino: biografia. Tradução e notas de Carlos Ancêde
Nouguê. São Paulo: LTr, 2003. p. 126.
[10] Op. cit., p. 139.
[11] CANCIO, José Alfredo Peris. Verbete:
Direitos sexuais e reprodutivos. In: Pontifício
Conselho para a Família. Lexicon: Termos
ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. Brasília: Edições
CNBB, 2007. p. 248-50.