terça-feira, 2 de janeiro de 2018

"DA DIREÇÃO ESPIRITUAL": MAGNÍFICA PÁGINA DE RAÏSSA MARITAIN


O que eu disse acima a respeito de nossa docilidade, em tudo, aos conselhos do Padre Clérissac, e da maneira pela qual esses conselhos levaram Jacques a um preconceito favorável à “Action Française”, que ele lamentaria tão vivamente depois, levanta um problema sobre o qual mais tarde Jacques e eu temos pensado muitas vezes.

Houve da parte do nosso guia uma inadvertência – e da nossa parte um erro – porquanto esse elemento de ordem temporal nunca deveria ter sido apresentado por ele no exercício da sua direção espiritual, nem aceito por nós sem esse exame.

Nessa inadvertência num homem de rara retidão de espírito e de caráter se revelam sem dúvida esses inevitáveis “limites do criado” que o Padre melancolicamente nos fazia notar mesmo na ação dos melhores.

Se tomo a liberdade de formular um julgamento que pode parecer presunçoso com relação a um sacerdote admirável, para com o qual a nossa dívida é imensa, não o faço por prazer, e garanto que não é sem me sentir confusa. Se só tratasse de mim, na pobreza dos meus próprios limites, contentar-me-ia silenciosamente com o exame da minha consciência; mas trata-se do que interessa à própria verdade num certo plano prático, e aí nem a nossa pequenez nem a grandeza de um guia poderiam impedir a verificação de um fato. Um preconceito que no Padre Clérissac era acidental à essência da sua própria vida espiritual e de seus conselhos espirituais – unidos à nossa confiança e à nossa inexperiência – teve consequências graves para nós mesmos e para alguns dos que haviam seguido conosco o estímulo recebido.

Desde então encontramos muitas vezes erros análogos, em diversos sentidos, e observamos as suas lamentáveis consequências. É, pois, de um modo muito geral que consignamos um certo risco inerente à direção das almas e dele falamos aqui. Quaisquer que sejam as críticas em que eu possa incorrer por isso, escrevo estas linhas sem nenhum receio, e de acordo com o sentimento que tenho do meu dever presente. Em toda vida chega um momento em que se torna natural não temer senão o Deus que se ama e de quem se espera a luz e a salvação.

É claro que não ponho em dúvida um só instante a utilidade geral da direção espiritual. Sentimos nós mesmos quão necessários e benéficos foram para nós os guias espirituais que Deus nos fez a graça de enviar e a nossa gratidão para com eles nunca terá fim. Sei também o que Santa Teresa e outros santos ensinaram sobre esse assunto tão importante. Se o próprio Padre Clérissac caçoava dos diretores que dão conselhos às suas penitentes sobre a cor do seu chapéu, ou que pretendem levá-las para o céu “numa poltrona”, estava contudo persuadido, com a tradição cristã, de que as almas, sobretudo quando se encontram nos caminhos da oração, têm uma grande necessidade dos conselhos de um homem prudente e experimentado, e não poderiam, sem temeridade, fiar-se em si próprias. A palavra “paternidade espiritual” seria talvez até mais apropriada aqui do que direção. A autoridade moral de um pai, a educação que dá, são tão necessárias na ordem espiritual quanto na natural. Como, sem ela, poderia a alma libertar-se das ilusões do amor próprio, não se deixar enganar pelas inclinações que formam um todo com a própria natureza individual, fugir às ciladas e às miragens do caminho, e aprender pouco a pouco a formar o julgamento da sua consciência nessa “paz de Deus que ultrapassa todo sentimento”? A alma cristã sabe o preço incomparável da confiança absoluta e da simplicidade através das quais lhe vêm luzes que nada no mundo poderia substituir.

As observações que quisera fazer aqui são observações à margem dessas grandes verdades. Referem-se ao mesmo tempo à prudência do diretor e à do dirigido. A experiência mostrou-nos até que ponto a direção exige do diretor a mais pura discriminação das coisas que são de Deus e das que são de César. Para que seja verdadeiramente espiritual, ela exige que o próprio diretor tenha distinguido em si mesmo o que pertence à ordem da graça, da fé, da teologia e da perfeição, do que pertence apenas à herança humana; hábitos seculares, preconceitos de família, de raça ou de casta, ou à ordem das inclinações individuais: preferências e gostos. Essa discriminação angélica não existe certamente em toda a sua perfeição: mesmo os santos, desapegados de tudo, vestem algum traje do seu tempo. Quase permanece algo que perturba, por menos que seja, a transparência do olhar do diretor mais escrupuloso, e associa às suas diretivas espirituais conselhos ou indicações de uma outra ordem.

Acontece assim, em virtude de entrelaçamentos psicológicos muito difíceis de evitar, que opiniões inteiramente humanas tomem no espírito do que deve praticar a “arte das artes” quase o mesmo lugar que as certezas que se referem à vida sobrenatural, e sejam apresentadas quase da mesma forma que o exigido para a perfeição da alma.

O problema de que falo não abrange apenas o papel do guia espiritual e o número restrito das pessoas que recorrem a um diretor. Considera também, em condições diferentes e num outro nível, o ministério do sacerdote com relação à massa dos fiéis. Como é difícil aqui a situação do padre! Deve ensinar e guiar. E mesmo quando se trata de coisas da terra, deve ensinar e guiar para o céu, e não para a terra. É lamentável que os fiéis recebam às vezes, com o ensinamento religioso, dogmático e moral, conselhos que transmitem aos princípios eternos, preconceitos e paixões de ordem temporal, social e política. A Igreja como tal, porém, só trata das coisas desse domínio nos seus mais elevados princípios – naqueles que dizem respeito à ordem da moral, e cujas aplicações variam ao longo da história humana, e podem ser sadias de acordo com modos analógicos diversos.

Quando a necessidade de uma tal discriminação não é claramente reconhecida, a influência do padre, que deveria ser puramente espiritual e moral, se estende às regiões da contingência política e nos encontramos assim diante do caso em que personalidades eclesiásticas se servem da boa-fé da sua autoridade para levar o povo fiel aos caminhos efêmeros e decepcionantes da política de um país ou de um dia. E isso, às vezes, como vimos na questão da “Action Française”, apesar das diretrizes e ordens do próprio Papa, e sem temer arrastar a uma desobediência formal almas religiosas que sem essa funesta confusão teriam reconhecido a legitimidade da obediência. É assim que se dão os cismas – muito mais em geral por questões de ordem temporal do que por questões de ordem religiosa e teologal.

Quanto ao dirigido, para voltar às nossas primeiras considerações, é claro que o seu próprio bom-senso e sua prudência, e, portanto, a sua responsabilidade, estão em jogo nesse caso. Evitaria certamente erros grosseiros se soubesse claramente desde o começo que por mais grosseira e pobre em virtudes que seja a sua consciência, é a ela no entanto que cabe, afinal, depois de esclarecida por conselhos prudentes, fazer sozinha diante de Deus o julgamento de que depende a moralidade do ato livre: pois a direção espiritual tem por fim ensinar-nos a formar bem, e não a iludir o julgamento de nossa consciência. Perdura, no entanto, o perigo acidental que assinalei, tanto maior para o dirigido quanto, por outro lado, mais segura for a direção que aceitou: a autoridade do pai espiritual admirado e venerado transborda então, quase inevitavelmente, sobre todos os conselhos que dá a uma alma que já tende naturalmente para a docilidade filial.

Essas almas fazem duras aprendizagens. Felizes aquelas em que, à custa de experiências, de erros, de sofrimentos e purificações divinas, se opera a discriminação que não encontraram no espírito de seu diretor. O seu caminho espiritual se simplifica então na medida em que tiver sido purificada, e ela tende a se conformar cada dia mais ao simples caminho da caridade, do amor de Deus e do próximo – em que consistem a Lei e os Profetas. Simplicidade verdadeiramente evangélica, a mais difícil das simplicidades que se possa atingir, cujo nome é sinônimo de perfeição. São essas almas que, pela virtude do Cristo, compensam as nossas faltas e nossos erros no seio da Igreja.


(Raïssa Maritain, “As grandes amizades: (memórias)”)


NOTA: Achei magníficas e sábias essas belas considerações de Raïssa Maritain sobre a direção espiritual. Se as tivermos presentes, evitaremos graves equívocos. Ser prudente, ponderado e equilibrado é sempre necessário.

“A POSIÇÃO DO CORPO” (GUSTAVO CORÇÃO)


Em todos os vários jogos e ofícios que andei aprendendo e ensinando ao longo da vida observei sempre a mesma regra primeira, sem a qual o aprendiz aprende mal ou não aprende. Tomemos como primeiro exemplo o jogo da esgrima: antes de aprender os gestos de prima, segunda, terça e quarta, antes das lições do ataque ou da defesa, o espadachim tem de aprender a fundamental posição do corpo bem plantado em cima das pernas flexíveis e arqueadas, tem de dispor o busto, a cabeça, a cintura e o braço esquerdo, tudo pronto para assumir a mais rica variedade possível de novas posições para o ímpeto ou para a esquivança, para a defesa ou para o ataque. Mas na base de todo esse calidoscópio de gestos vivos e prontos o bom esgrimista há de possuir uma primeira e essencial posição do corpo. E logo se vê, pela especial beleza da especial elegância de cada jogo, quem será esgrimista acima do comum. Observem no jogo do bilhar (refiro-me ao verdadeiro e nobre bilhar francês), e logo verão quem joga e quem não joga pelo simples jeito de pegar no taco e de acavalar os dedos da mão espalmada sobre a lousa. Não há posição do corpo mais ridícula do que a do principiante no bilhar ou na esgrima. Um professor de piano que conheci no grupo d’O Pinguim, com certo exagero de espanhol costumava dizer que os homens têm uma tendência natural de “hacer las cosas mal hechas”. As primeiras lições de piano são silenciosas e mais esculturais do que musicais: são a busca do corpo, o preparo da mão, o retoque do busto; as semifusas virão a tempo, quando o corpo do pianista já estiver amansado. Tenho experiência de vários aprendizados frustrados, e por isso posso gabar-me do oblíquo proveito de tantos fracassos. Anos de má pintura e péssima escultura, dois ou três de um invencível piano, esgrima, e até ano e meio de um violino que só serviu para me inculcar uma ilimitada admiração pelos que conseguem fazer gemer tão absurdo instrumento. Lembro-me das tumultuosas lições de violino de minha irmã ainda hoje caçula de 73 anos com o professor Ronchini, italiano extremamente irascível que se sentia ofendido, ferido em sua honra, quando a menina de sete anos lá nos confins de minha saudade abraçava mal o instrumento e empunhava mal o arco. Mais de uma vez, estando eu na varanda à espera da irmã, vi passar pela janela o arco, como no I ato do Parsifal.

Outra lembrança que me inunda de saudades é a da mão do Sr. Castanheira, meu padrasto: era grande, vigorosa e aristocrática. Via-se nela, no simples jeito de pegar uma ferramenta, e de dominar a matéria trabalhada, toda uma condensação de habilidades disponíveis. Há mãos assim que nos dão a impressão de serem capazes de pensar antes de trabalhar.

Escreveria mais extensamente sobre este transcendente assunto, a posição do corpo, e teria gosto de desenvolvê-lo em outros níveis se o leitor prometesse não se enfadar. No que sairia perdendo porque estou convencido de estar hoje trazendo a mensagem mais proveitosa do que tantas outras que debalde tentei transmitir.

Para cativar o leitor exageremos: tudo na vida depende da posição do corpo. O Evandro Pequeno ou o Ovalle, ambos inesquecíveis personagens d’O Pinguim, um deles, qual?, uma tarde perguntou-nos: “Vocês já repararam que a gente, quando vai pedir dinheiro, fica torto?” E a mímica que acompanhava a tese demonstrava-a cabalmente. Donde concluímos, parodiando o Eclesiastes, que há uma posição para pedir e uma posição para dar, outra posição para tocar piano e outra para a harpa, uma para produzir temor e outra para infundir piedade. Tudo da vida, em suma, é posição do corpo. Sendo verdade, como dizia o Teruz, que todos temos tendência natural de fazer as coisas malfeitas, concluiremos que seria mais proveitoso desentortar os corpos mal crescidos do que lhes estimular, como é moda, uma imprudentíssima criatividade.

Ou então concluiremos, à vista do espetáculo que se nos oferece, que houve um abalo cósmico profundo e imenso e que é o próprio mundo que anda torto em sua posição básica, e grotescos serão os frutos desse aleijão universal.

Sim, é nas coisas básicas e primeiras, e não nas últimas e difíceis, que são hoje cometidos os erros mais ridículos e mais funestos. Como também são as matérias mais gratuitas e abundantes que começam a faltar. Não me refiro ao petróleo do Oriente Médio; refiro-me antes ao AR. Vivemos um arquejante fim de civilização. Temos falta de ar. Ouvi há dias uma conferência sobre a poluição do ar, sobre a poluição da água e sobre a poluição sonora. De todos esses disparates eu me escandalizo muito mais com a ONU do que com as guerras, porque as situações internacionais que levam às guerras ainda guardam coerência com a lei natural que compele o homem à defesa de seus bens, pelos quais sempre houve uma normal disposição de lutar até o sangue. O que me parece muito afastado do normal é o himalaia de imposturas que foram inventadas com o pretexto de evitar os horrores das guerras, e que produziram esse horror de paz em que se polui o ar, a água, e sobretudo se poluem as almas. E diante da monstruosa apologia da monstruosidade, diante da insensibilidade universal produzida nos lugares instituídos para apuro do homem, diante de tal amontoado de coisas malfeitas, sou forçado a concluir que o mundo inteiro deu uma reviravolta, um mau jeito do corpo, e ficou torto.

Teremos de começar pelo princípio. E se não insistirmos na ortopedia mundial e na doutrina que exige previamente a posição certa para o corpo, receio muito a grande explosão que será produzida pela massa pavorosa de asneiras concentradas. Ouvi dizer, entres outras hipóteses, que as estrelas novae surgem por condensação da poeira espacial. A hipótese que transforma a fuligem em estrela tem sua beleza. Receio que nosso mundo, na direção que tomou, conseguirá o prodígio maior de transformar em alguma Aldebarã o pó e o cacarejar das academias e dos institutos de Justiça e Paz.

Empreendamos, pois, a nossa cruzada pelas coisas bem-feitas, a começar pelo reaprendizado da posição do corpo, se na verdade quisermos prolongar um pouco a lenda do homem neste nobre planeta que viu sua casca vibrar com tantos golpes de heroísmo e tantos passos da santidade. Se não, se já estão fartos, é só deixar tudo correr como lá vai e como se lê nas folhas.


(Gustavo Corção, “Conversa em sol menor: memórias recolhidas”)