quarta-feira, 27 de maio de 2015

O MEU EU CERZIDO


Eu sou um homem cerzido. Um homem meio novo e meio velho. Um homem com remendos embutidos.

Não só as roupas são cerzidas. Também os corpos, também os espíritos. Descobri isso nas vezes em que levei roupas à Maria's Cerzideira, bem ali, naquela esquina poética da Praça da Savassi. Aquela esquina próxima à Livraria Mineiriana, que ou fechou ou mudou de lugar.

Minhas calças, que andam sozinhas e têm vontade própria, parecem carros velhos, amantes da manutenção, obcecados por reparos. Sou como o pároco de aldeia: minha alma é devorada pelo tédio.

Talvez o senhor não me acredite, mas meu eu tem fissuras, tem dobras, tem pedaços juntados, tem rasgos reunidos. Tentei comprar uma alma nova, mas não encontrei recursos. Tive, pois, de remendá-la, a antiga, enquanto não chega o momento oportuno. Se não a remendasse, a minha pobre alma, esse eu interior que me move as patas, explodir-se-ia; dividir-se-ia em duas, três ou quatro metades. E o vexame, o vexame seria maior...

Não, não. As minhas pernas não foram costuradas. Tenho cerziduras na alma, costuras nas costelas, nas vértebras do espírito. São remendos invisíveis. Um homem comum não os enxergará. Talvez um asceta, um profeta, um poeta, um místico, um espírito mais atento. Meu eu interior, aquele que me ouve quando penso, aquele que me escuta quando falo comigo, está compulsoriamente reunido, amarrado, evitando a dispersão, que se perca alguma coisa. Eu sou um pano humano, um cosido andante, um corpo com um eu cerzido. Uma costura mais ou menos grossa. Uma nota dissonante. Um enxerto de matéria estranha. Um amontoado de linhas que remendam um homem.

Minha alma envelheceu. Meu corpo envelheceu. Meu sonho envelheceu. E as sombras da noite, que também envelheceu, me envolvem. Que insônia!

Como vencer essa velhice, essa casmurrice do espírito? Minha alma tem dor nas costas, anda envergada, olhando para o chão. Seus olhos ensimesmados já não veem os desníveis da calçada. Tudo lhe dói. Sorrir lhe dói, falar lhe dói, ouvir lhe dói, deitar lhe dói. Tudo dói. Tenho artrites nas articulações do espírito, e não há remédio para o meu mal.

Preciso comprar uma alma nova... Mas, enquanto não reúno forças, não reúno ensino, cabe-me esperar que me franqueiem a porta, uma janela aberta, um novo destino.