quarta-feira, 26 de novembro de 2014

ERASMO, O ASNO


Erasmo de Roterdã (sim! Trata-se de um caso de homonímia!) era um ser de uma espécie superior. Na verdade, para dizer melhor, era um ser superior da sua espécie. Asno de nascimento e por um implacável decreto da natureza, possuía uma inteligência maior que a de muitos seres humanos, tanto que fora admitido – apesar do seu mau cheiro de animal e dos hábitos alimentares pouco ortodoxos – aos estudos, aprovado no vestibular e encontrava-se cursando o último período de direito, em uma honrada instituição universitária.

Aquela criatura peluda, que precisava sentar-se nas últimas carteiras para não atrapalhar a visão dos colegas, era um dos melhores alunos da classe, possuía boas notas e deixava pasmos todos os que assistiam às suas incríveis intervenções em sala de aula, saborosamente perspicazes. Tudo indicava seria ele o orador da turma – apesar dos relinchos que às vezes inadvertidamente soltava –, pois além de ter boa voz, escrevia bem, ousando até a publicar artigos no jornal dos estudantes. Todos criam que ele ganharia o prêmio conferido ao melhor aluno da turma.

No princípio do curso, Erasmo chegou a interessar-se por algumas colegas, mas era um pouco tímido e reservado – quase um criado-mudo! –, devido à terrível fama de seus ancestrais de dedicar-se diuturnamente a asneiras. Um certo complexo de inferioridade assaltava-o, dificultava-lhe as relações, além do seu temperamento assertivo e um tanto quanto renitente. De quando em quando, alguns colegas montavam nele, expondo-o à zombaria coletiva, mas havia também os companheiros leais e inseparáveis, que o defendiam, animavam e admiravam.

Alguns diziam:

– Esse burro vai longe!

Outros prognosticavam:

– Esse asno vai acabar sendo juiz!

Outros criticavam-no por às vezes pastar alguma grama da redondeza, ao que ele, espirituosamente, retrucava:

– Vocês comem o bandejão e estão falando de mim?!

Erasmo era um espantoso caso de animal com alma racional. Muitas vezes fora expulso da faculdade pelos vigias, açoitado por alunos de outras turmas, que imaginavam tratar-se de um quadrúpede estúpido qualquer e o enxotavam como se faz a um cachorro que entra numa igreja. Contudo, logo vinha alguém que conhecia os seus peculiares predicados, a sua inusitada condição de aluno quadrúpede, de animal dotado de razão, mais do que isso, de aguda razão. Alguns acabavam recordando-se de tê-lo visto uma ou outra vez falando no orelhão.

Mesmo andando sobre quatro patas, algumas coisas estupefaziam-no. Ele tinha a impressão de que muitos de seus colegas ruminavam, só que com a silenciosa docilidade dos cordeirinhos. Ele via uma estranha linearidade no comportamento do rebanho, equivalente à dos de sua espécie que sempre fazem a mesma coisa, sem maiores reflexões, desde que o mundo é mundo. Percebia, com estarrecimento, que alguns de seus amigos eram tão dóceis aos mestres quanto seus irmãos aos capatazes. Novamente, com uma diferença: seus irmãos sabiam dar coices!

Mas, voltemos ao último semestre. Erasmo estava concentrado nos estudos. Vivia como um asceta. Não bebia, não fumava, não ia pras baladas. Nem sabia quem estava pegando quem. Ele nem se dava conta da existência de uma sua colega, mula, que partilhava algo de sua índole. Só por isso não a mencionei ainda. Também ela era um ser superior. Superior às outras mulas. Ademais, era belíssima, meiguíssima, finíssima, humílima e vários outros íssimas. Não se sabe como, mas era mais bela que todas as outras alunas reunidas e elevadas à décima potência. O sonho de consumo de qualquer animal menos distraído. Também ela passara pelos dissabores de possuir uma alma racional em corpo de animal. Apenas seu nome soava um pouco estranho: Suplícia, mas tinha algo que ver com a sua sorte. Suplícia apaixonou-se por Erasmo.

Lançando mão de recursos mais ou menos sutis, de expedientes mais ou menos criativos, Suplícia tentava a todo custo chamar a atenção de Lutero, digo, de Erasmo, que, absorto em suas meditações, absolutamente não a notava. Deixava ela às vezes cair os livros no chão para que ele pegasse, o que este fazia de bom grado, mas sem distinguir o dolo específico contido na ação da estupenda, extraordinária, magnífica e fenomenal colega.

Depois de muita persistência de Suplícia, caíram as escamas dos olhos de Erasmo e ele viu. Viu que ela o amava. Começaram a namorar... Só que o namoro não demorou muito, pois Erasmo era um asceta, um místico, um ser esquisito, que só pensava em estudar.

Suplícia não se conformou com o rompimento, que lhe partiu o coração. Caiu em depressão profunda, começou a embriagar-se e a usar drogas. Sua aparência tornou-se horrível. Parecia não dormir. Alguns diziam:

– Vejam o seu estado deplorável! Está apaixonada! Não se valoriza!

Outros comentavam:

– Não suportou o baque. Ficou louca. Perdeu a cabeça.

Suplícia tentava preencher o vazio que havia em si, o vazio deixado por Erasmo. Mas trocava os pés pelas mãos, digo, as patas traseiras pelas dianteiras. Rolava ladeira abaixo, na ladeira da existência. Perdeu o juízo.

E essa, meus amigos, acreditem ou não, é a verdadeira história, é a verdadeira origem da mula-sem-cabeça.

Paul Medeiros Krause
 

terça-feira, 25 de novembro de 2014

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

MÁSCARAS


            Prezado leitor, será que nós estamos plenamente convencidos de que Deus criou-nos para a felicidade suprema e completa? Será que nos conduzimos por essa verdade?

 

            Estou me aproximando dos meus quarenta anos, no ano que vem os completo, se Deus quiser, e as leituras e a experiência de vida acumuladas até aqui levam-me a crer que a maioria de nós não nos convencemos da nossa vocação inadiável para a felicidade. Ou, dito de outra forma, estou convencido da existência de uma tentação sutil, sorrateira, que o demônio arma aos crentes: a ideia ilusória de que seguir o caminho de Deus significa negar a própria natureza, o aniquilamento do próprio eu, o sacrifício da espontaneidade e da criatividade, a mutilação da personalidade.

 

            O demônio é como o PT, na verdade, o PT, verdadeira sucursal do inferno, é como o demônio: acusa os outros do que ele faz. A grande verdade é que o capeta, quanto mais uma pessoa a ele se confia, de forma tácita (talvez a mais comum) ou expressa, mais destrói a sua natureza, o seu eu, a sua identidade única, a sua liberdade e espontaneidade. As personalidades confiadas ao pai da mentira são fragmentadas, sem unidade e coerência. O diabo, astuto conhecedor da natureza humana, sugere continuamente aos homens a ideia de que Deus os quer tristes e frustrados, os quer mutilados, quer negar-lhes tudo. Lembremo-nos da primeira mentira da serpente no Livro do Gênesis: “É verdade que Deus vos proibiu de comer de toda árvore do jardim?”.

 

            O Livro do Gênesis é de uma atualidade gritante. Aquela mentira é diuturnamente soprada aos ouvidos da nossa alma pelo inimigo do gênero humano. Desgraçado, derrotado, sumamente infeliz, invejoso, escravo dos seus vícios, Satanás deseja ver-nos desgraçados, destroçados, fragmentados, sumamente infelizes como ele.

 

            Há uma máxima, salvo engano, da teologia escolástica: “A graça não anula a natureza, mas a leva à perfeição”, isto é, a ação de Deus, a ação do Espírito Santo na alma em estado de graça, não destrói a natureza humana, não a mutila, não a cerceia, mas eleva-a, aperfeiçoa-a. Nesse sentido, só pode ser uma tentação diabólica pensar que a ação do Espírito Santo na nossa alma aniquilará o nosso próprio eu, sufocará a nossa individualidade, destruirá os nossos gostos, as nossas inclinações, eliminará os nossos lazeres, lançará uma camisa de força em nossa criatividade. Nada mais falso! É justamente o contrário. O Espírito Santo tão somente aperfeiçoará os nossos mais legítimos anseios, orientando-os para o seu pleno atingimento.

 

            É por desconhecer essas verdades que muitas vezes usamos máscaras. É por ignorar isso que tantas vezes nos apresentamos diante de Deus e dos homens como nós não somos, exibindo virtudes que não possuímos e dissimulando nossos defeitos. Temos uma visão equivocada, distorcida e estereotipada da santidade. Muitas vezes, até para rezar, utilizamos entonações sentimentais, piegas, esquisitas, pasteurizadas, como se a eficácia da nossa oração dependesse de uma certa homogeneidade, da opinião exterior da assembleia, e não da nossa nudez, da nossa tranquila simplicidade diante de Deus, que conhece até as dobras das nossas almas. Muitas vezes temos a ideia falsa de que Deus deseja um monte de robozinhos que O sirvam. Esses robozinhos, se olharem para o lado, já estariam pecando. Nada disso. Isso é escrúpulo.

 

            “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Deus não nos quer com máscaras. Deus não nos quer com poses de santos; quer-nos santos, sem pose. Santos ao natural, com os cabelos ao vento. Ele não quer entonações afetadas, sorrisos forçados, artificialismos. Ele quer que sejamos santos com toda a tranquila espontaneidade que emerge das nossas almas banhadas pela luz do seu Espírito. Deus quer expandir a nossa personalidade ao máximo, e não manietá-la. Não é à toa que, ao ressuscitar Lázaro, Cristo mandou que o desligassem, o desamarrassem. Deus não nos impõe pesos desnecessários, pois o seu fardo é suave, e o seu peso, leve.

 

            O Espírito Santo é criativo por natureza, e Ele quer que sejamos livres, criativos também. Deus só nos proíbe a autodestruição. O pecado é uma espécie de automutilação, de autoflagelo ou suicídio espiritual. A Lei de Deus, portanto, só nos proíbe de ferirmos a nós mesmos e aos outros. O pecado nos desfigura; a graça nos cura.

 

            É sempre bom lembrar as palavras do Papa João Paulo II no início do seu Pontificado: “Não, não tenhais medo! Antes, procurai abrir, melhor, escancarai as portas a Cristo! Ao Seu poder salvador abri os confins dos Estados, os sistemas econômicos assim como os políticos, os vastos campos de cultura, de civilização e de progresso! Não tenhais medo! Cristo sabe bem 'o que é que está dentro do homem'. Somente Ele o sabe!”

 

            O que Deus nos tira, meus irmãos, é o que não é Dele: são as falsas alegrias, os falsos gozos, as falsas amizades, as falsas esperanças neste mundo ilusório, pois, como diz São Paulo, “a figura deste mundo passa”.

 

            Tenhamos a coragem de ser nós mesmos. De corresponder cada vez mais à nossa própria natureza, à nossa própria identidade. Deus que nos criou com todos os nossos dons quer que os desenvolvamos ao máximo, e não que enterremos nossos talentos na terra. Ele mesmo disse isso no Evangelho. Ele não quer tolher a nossa personalidade, não quer vestir-nos uma camisa de força. Pelo contrário, o Espírito Santo é o espírito da abertura, da alegria, da liberdade calma, da espontaneidade tranquila, da simplicidade serena. Nosso Criador não nos deu dons para que nós os atrofiássemos.

 

            Confesso a vocês, e talvez já tenha dito isso antes, para mim, as manhãs de domingo são uma metáfora, uma figura do paraíso, da eternidade. Quando vou fazer meu esporte nas manhãs de domingo, vejo tanta alegria, tanta espontaneidade, tanta criatividade nas pessoas: vejo bicicletas diferentes, skates diferentes, tantos tipos de motos, carros, brinquedos e diversões. Vejo coisas que eu nem imaginava que existissem. Estou seguro de que o paraíso é assim: uma explosão de felicidade, de criatividade e de espontaneidade, em que as nossas personalidades se mostram integralmente e encontram a sua plena realização e o seu pleno desenvolvimento, sob o sol luminoso da presença de Deus.
 

 

Paul Medeiros Krause