quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

SOBRE O SUPOSTO DIREITO DE OFENDER


                        Fala-se muito ultimamente que o estado é laico. Procura-se, a todo custo, defender as liberdades laicas. Almeja-se relegar a prática religiosa ao âmbito exclusivamente privado da vida dos indivíduos, excluindo-a da vida pública. Defende-se, por outro lado, um suposto direito irrestrito de fazer humor, inclusive em matéria de religião. Todavia, tais entendimentos baseiam-se ou na ignorância ou na leitura apressada da Constituição e dos tratados internacionais sobre direitos humanos, notadamente de dispositivos que não podem ser revogados.

 

                        É preciso dizer, antes de mais, que a laicidade, que nada tem a ver com laicismo – caricatura, deturpação da laicidade, como o racionalismo o é da racionalidade –, é via dupla: tem mão e contramão. A máxima: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” significa que as instâncias civil e religiosa têm as suas esferas próprias de atuação. Não deve haver interferências indevidas, reciprocamente. Cada uma dessas instâncias possuem campos próprios, exclusivos.

 

                        Por conseguinte, se é preciso defender a laicidade do estado, não menos importante é assegurar o que é próprio das confissões religiosas: a sua doutrina, o seu ensino, a sua liturgia, os seus ritos, a sua disciplina interna. Em outras palavras: faz-se mister proteger a vivência da religião da deformação chamada laicismo, que é uma espécie de polícia antirreligiosa ou anticlerical.

 

                        A liberdade religiosa é um direito humano universal e inalienável. É consagrado na Declaração Universal dos direitos do homem de 1948, que assim reza:

 

“Art. 18. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito importa a liberdade de mudar de religião, ou convicção, bem assim a liberdade de manifestá-las, isoladamente ou em comum, em público ou em particular, pelo ensino, pelas práticas, pelo culto e pela observância dos ritos.” (negritos meus)

 

                        Observe-se, pois, que o direito de liberdade religiosa garante a liberdade de manifestar a religião publicamente, inclusive pelo ensino, pelas práticas, pelo culto e pelos ritos.

 

                        No mesmo sentido é o Pacto de São José da Costa Rica, de que a República Federativa do Brasil é signatária, e que, a meu ver, possui inegável status de norma constitucional:

 

“Art. 12. Liberdade de crença e de religião

......................................................................................................................

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.” (negritos meus)

 

                        Note-se que o Pacto de São José da Costa Rica afiança o direito de cada um divulgar a sua religião ou a sua crença, inclusive publicamente.

 

                        Tendo sido incorporado ao direito brasileiro precedentemente à vinda a lume da Emenda Constitucional 45, de 2004, o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos) possui status de norma constitucional, como reconheceu o Ministro Celso de Mello no RE 466343, embora alguns magistrados pretendam, desavisadamente, impor o silêncio a alguns ministros de confissão religiosa, como no caso do Pe. Luiz Carlos Lodi, impedido por um magistrado de chamar uma abortista, pasmem!, de “abortista”.

 

                        Também a nossa Constituição agasalha, expressamente, a liberdade religiosa como direito fundamental, insuscetível de emenda constitucional tendente a aboli-lo (art. 60, § 4.º, IV).

 

                        Prevê o art. 5.º, incisos VI e VIII, da Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988:

 

“Art. 5.º .......................................................................................................

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

......................................................................................................................

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;”. (negritos meus)

 

                        A Parte Especial do Código Penal consagra um título inteiro aos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 208 e seguintes), deferindo à religião a proteção penal. Isso significa que outra liberdade, a de manifestação do pensamento, prevista no art. 5.º, IV, da Constituição, não é absoluta. Ao contrário da leitura ligeira que muitos fazem de nosso arcabouço jurídico, incluídos o satírico grupo “Porta dos Fundos” et caterva, o sentimento religioso não está vocacionado a ser objeto de chacota geral. A religião não está aí – perdoem-me os mais suscetíveis – “com a bunda exposta na janela pra passar a mão nela”, para usar a expressão de um compositor nosso.

 

Não existem: “direito de ofender”, “direito de ridicularizar”, direito de zombar”, “direito de escarnecer”. O sentimento religioso é um bem jurídico. É tutelado pelo direito. Inexiste “direito à molecagem com o que é sagrado para outrem”. Na verdade, o que o ordenamento pátrio impõe é o “dever de caçar serviço” ou “de caçar o que fazer”.

 

                        Diz o art. 208 do Código Penal:

 

“TÍTULO V

DOS CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO E CONTRA O REPEITO AOS MORTOS

 

Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo

 

Art. 208. Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia religiosa ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:

Pena – detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa.

 

Parágrafo único. Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.”

 

                        A Lei 4.889, de 9 de dezembro de 1965, que define os crimes de abuso de autoridade, estabelece:

 

“Art. 3.º Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

......................................................................................................................

d) à liberdade de consciência e de crença;

e) ao livre exercício do culto religioso;”.

 

                        Por seu turno, a Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, estabelece crimes de intolerância religiosa.

 

Infelizmente, há instâncias da vida civil que se dedicam, quase por esporte, à ridicularização e ao menoscabo sistemáticos do cristianismo, nem sempre de forma sutil, sob pretexto de exercício de liberdade artística ou jornalística. Convém notar que objetos em si inofensivos, se mal empregados, podem constituir meios de agressão. Uma caneta pode furar um olho. Só mesmo um indivíduo muito ingênuo ou mal intencionado sustentará que a utilização de terços em forma de pênis é arte (mesmo que seja “engajada”). Falo de um caso concreto. Na verdade, isso é desvirtuar a arte, desviá-la de seus propósitos, utilizando-a como meio de lesionar, de perpetrar crime, como instrumento de agressão. Uma liberdade mal utilizada configura abuso, ilícito. Não é raro que a imprensa, sob pretexto de informar, desinforme, confunda ou suscite juízos temerários contra representantes de confissões religiosas.

 

                        Não me impressiona o argumento da vedação absoluta a qualquer censura prévia. Por que razão o sentimento religioso não pode ser mantido intacto, devendo tolerar ofensas e agressões, para só depois ser reposto ao status quo ante mediante indenização ou reparação civil, que é sempre inexata, imprecisa e estimativa? Se há a garantia constitucional à liberdade religiosa, a lesão a ela deve ser coibida, e não somente facultada a recomposição do direito lesado. Não há direito de lesar. Jornalistas e artistas defendem, em causa própria, um suposto direito absoluto. Não lhes assiste, porém, o direito de violar previamente a esfera jurídica de outrem, facultando a este outrem apenas reparação posterior. O direito não vive de reparos, não vive de remendos, de catar os cacos. Tolerar a ofensa a direito para permitir tão somente reparação posterior equivale a aniquilar o mesmo direito. Cacos juntados nunca equivalem ao vaso íntegro. Se há o bem jurídico, ele exige proteção prévia. A indenização há de ser a exceção, e não a regra. Pois o ordenamento jurídico oferece mecanismos para que a agressão seja impedida e não se configure. Legítimo, pois, será o recurso prévio, cautelar, ao Poder Judiciário. A tese da impossibilidade de censura prévia é uma armadilha. Afinal, a Constituição submete à apreciação do Poder Judiciário não somente a lesão, mas também a ameaça a direito (art. 5.º, XXXV).

  

Paul Medeiros Krause

Procurador do Banco Central em Belo Horizonte

NOSSOS PAIS FRACASSARAM

Há exatos trinta e nove anos na Igreja Evangélica de Confissão Luterana da Rua Dona Salvadora, meus pais, Rosa e Paulo, em cerimônia ecumênica, prometiam um ao outro e a Deus amar-se mutuamente enquanto a morte não se atrevesse a meter-se de permeio. Causa-me pena não ter estado presente a tão relevante acontecimento familiar, e que tanto me dizia respeito, mas é que eu ainda não havia sido aquinhoado com o dom da existência.

 
Talvez naquele mesmo primeiro de fevereiro, ou poucos dias depois, minhas duas antigas metades microscópicas, que separadas ainda não eram eu, acabaram encontrando-se e fundindo-se como duas almas gêmeas. E eu comecei.
 
Não vou revelar à indiscrição do leitor os motivos pelos quais aquele juramento não surtiu todo o efeito que o cimento da indissolubilidade devia ter produzido (um padre católico concelebrou). Fato é, porém, que graças a um decreto de superior instância estou aqui, pois aquele acidental cruzamento de destinos resultou na feliz consequência, pelo menos para mim, do meu chamamento ao mundo. A inexistência, imagino, deve conter uma estranha monotonia...
 
Bendito erro, imprudência proverbial! Parece que sucessivos equívocos encaixaram-se e moveram algum tipo de engrenagem de causalidades. Foi a força de uma decisão mal tomada que me permitiu estar aqui hoje, leitor, dirigindo-lhe algumas palavras. Não gostaria que fossem apagados meus anos já vividos. Por isso, repito: abençoada sucessão de equívocos que me permitiu ter os próprios!
 
Mas, o meu ato de louvor à vida, de gratidão por ser, não me impede de reconhecer que nossos pais falharam. Sim, nossos pais, e não somente os meus. Olhemos juntos para as nossas famílias.
 
A Belo Horizonte de hoje não é a mesma de trinta anos atrás. Suponho que o mesmo se dê com quase todas as cidades brasileiras. Algum estranho vírus atingiu nossos pais e carcomeu nossos tios. Misturaram alguma coisa a nossos entes queridos (ou aos laços que os uniam). Até nossos avós aquela saborosa bebida de festa, o convívio familiar, era substanciosa, energética, tonificante, uma vitamina. Nossos avós derreteram, dissolveram-se nossos tios como papel exposto à chuva. Alguém misturou meus avós com água, e com ácido os do vizinho. Meus pais são meus avós diluídos.
 
Houve uma mutação cromossômica, uma alteração de moléculas na composição dos vínculos.
 
O meu maior temor é que este processo químico continue acontecendo. Que algum nefasto elemento continue sendo adicionado à fórmula das famílias. Temo que esta adulteração não se tenha interrompido nos responsáveis pelo nosso aparecimento. Não duvido que entre meus pais e eu mais água ou ácido tenham sido vertidos. Que será de meus netos? Que será de meus filhos?