Fala-se muito
ultimamente que o estado é laico. Procura-se, a todo custo, defender as
liberdades laicas. Almeja-se relegar a prática religiosa ao âmbito
exclusivamente privado da vida dos indivíduos, excluindo-a da vida pública.
Defende-se, por outro lado, um suposto direito irrestrito de fazer humor,
inclusive em matéria de religião. Todavia, tais entendimentos baseiam-se ou na
ignorância ou na leitura apressada da Constituição e dos tratados
internacionais sobre direitos humanos, notadamente de dispositivos que não
podem ser revogados.
É preciso dizer, antes
de mais, que a laicidade, que nada tem a ver com laicismo – caricatura,
deturpação da laicidade, como o racionalismo o é da racionalidade –, é via
dupla: tem mão e contramão. A máxima: “Dai
a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” significa que as
instâncias civil e religiosa têm as suas esferas próprias de atuação. Não deve
haver interferências indevidas, reciprocamente. Cada uma dessas instâncias
possuem campos próprios, exclusivos.
Por conseguinte, se é preciso
defender a laicidade do estado, não menos importante é assegurar o que é
próprio das confissões religiosas: a sua doutrina, o seu ensino, a sua
liturgia, os seus ritos, a sua disciplina interna. Em outras palavras: faz-se
mister proteger a vivência da religião da deformação chamada laicismo, que é uma espécie de polícia
antirreligiosa ou anticlerical.
A liberdade religiosa é
um direito humano universal e inalienável. É consagrado na Declaração Universal
dos direitos do homem de 1948, que assim reza:
“Art. 18. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento,
de consciência e de religião. Este direito importa a liberdade de mudar de
religião, ou convicção, bem assim a liberdade de manifestá-las, isoladamente ou
em comum, em público ou em particular, pelo
ensino, pelas práticas, pelo culto e pela observância dos ritos.” (negritos meus)
Observe-se, pois, que o
direito de liberdade religiosa garante a liberdade de manifestar a religião
publicamente, inclusive pelo ensino,
pelas práticas, pelo culto e pelos ritos.
No mesmo sentido é o
Pacto de São José da Costa Rica, de que a República Federativa do Brasil é
signatária, e que, a meu ver, possui inegável status de norma constitucional:
“Art. 12. Liberdade de crença e de religião
......................................................................................................................
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de
consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua
religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a
liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças,
individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.” (negritos meus)
Note-se que o Pacto de
São José da Costa Rica afiança o direito de cada um divulgar a sua religião ou a sua crença, inclusive publicamente.
Tendo sido
incorporado ao direito brasileiro precedentemente à vinda a lume da Emenda
Constitucional 45, de 2004, o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção
Americana sobre Direitos Humanos) possui status
de norma constitucional, como reconheceu o Ministro Celso de Mello no RE
466343, embora alguns magistrados pretendam, desavisadamente, impor o silêncio
a alguns ministros de confissão religiosa, como no caso do Pe. Luiz Carlos
Lodi, impedido por um magistrado de chamar uma abortista, pasmem!, de
“abortista”.
Também a nossa
Constituição agasalha, expressamente, a liberdade religiosa como direito
fundamental, insuscetível de emenda constitucional tendente a aboli-lo (art. 60,
§ 4.º, IV).
Prevê o art. 5.º,
incisos VI e VIII, da Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988:
“Art. 5.º
.......................................................................................................
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de
crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida,
na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
......................................................................................................................
VIII – ninguém
será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em
lei;”. (negritos
meus)
A Parte Especial do
Código Penal consagra um título inteiro aos crimes
contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 208 e
seguintes), deferindo à religião a proteção penal. Isso significa que outra
liberdade, a de manifestação do pensamento, prevista no art. 5.º, IV, da
Constituição, não é absoluta. Ao contrário da leitura ligeira que muitos fazem
de nosso arcabouço jurídico, incluídos o satírico grupo “Porta dos Fundos” et caterva, o sentimento religioso não está
vocacionado a ser objeto de chacota geral. A religião não está aí – perdoem-me
os mais suscetíveis – “com a bunda exposta na janela pra passar a mão nela”,
para usar a expressão de um compositor nosso.
Não existem: “direito de ofender”,
“direito de ridicularizar”, direito de zombar”, “direito de escarnecer”. O
sentimento religioso é um bem jurídico. É tutelado pelo direito. Inexiste
“direito à molecagem com o que é sagrado para outrem”. Na verdade, o que o ordenamento
pátrio impõe é o “dever de caçar serviço” ou “de caçar o que fazer”.
Diz o art. 208 do Código
Penal:
“TÍTULO V
DOS CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO E CONTRA O
REPEITO AOS MORTOS
Ultraje a culto
e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo
Art. 208. Escarnecer de alguém publicamente, por
motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia religiosa
ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto
religioso:
Pena – detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou
multa.
Parágrafo único.
Se há emprego de violência, a
pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.”
A Lei 4.889, de 9 de
dezembro de 1965, que define os crimes de abuso de autoridade, estabelece:
“Art. 3.º Constitui abuso de autoridade qualquer
atentado:
......................................................................................................................
d) à liberdade de consciência e de crença;
e) ao livre exercício do culto religioso;”.
Por seu turno, a Lei
7.716, de 5 de janeiro de 1989, estabelece crimes de intolerância religiosa.
Infelizmente, há instâncias da vida
civil que se dedicam, quase por esporte, à ridicularização e ao menoscabo sistemáticos
do cristianismo, nem sempre de forma sutil, sob pretexto de exercício de liberdade
artística ou jornalística. Convém notar que objetos em si inofensivos, se mal empregados,
podem constituir meios de agressão. Uma caneta pode furar um olho. Só mesmo um
indivíduo muito ingênuo ou mal intencionado sustentará que a utilização de terços
em forma de pênis é arte (mesmo que seja “engajada”). Falo de um caso concreto.
Na verdade, isso é desvirtuar a arte, desviá-la de seus propósitos,
utilizando-a como meio de lesionar, de perpetrar crime, como instrumento de
agressão. Uma liberdade mal utilizada configura abuso, ilícito. Não é raro que
a imprensa, sob pretexto de informar, desinforme, confunda ou suscite juízos
temerários contra representantes de confissões religiosas.
Não me impressiona o
argumento da vedação absoluta a qualquer censura prévia. Por que razão o
sentimento religioso não pode ser mantido intacto, devendo tolerar ofensas e
agressões, para só depois ser reposto ao status
quo ante mediante indenização ou reparação civil, que é sempre inexata, imprecisa
e estimativa? Se há a garantia constitucional à liberdade religiosa, a lesão a ela
deve ser coibida, e não somente facultada a recomposição do direito lesado. Não
há direito de lesar. Jornalistas e artistas defendem, em causa própria, um suposto
direito absoluto. Não lhes assiste, porém, o direito de violar previamente a
esfera jurídica de outrem, facultando a este outrem apenas reparação posterior.
O direito não vive de reparos, não vive de remendos, de catar os cacos. Tolerar
a ofensa a direito para permitir tão somente reparação posterior equivale a
aniquilar o mesmo direito. Cacos juntados nunca equivalem ao vaso íntegro. Se
há o bem jurídico, ele exige proteção prévia. A indenização há de ser a exceção,
e não a regra. Pois o ordenamento jurídico oferece mecanismos para que a
agressão seja impedida e não se configure. Legítimo, pois, será o recurso
prévio, cautelar, ao Poder Judiciário. A tese da impossibilidade de censura
prévia é uma armadilha. Afinal, a Constituição submete à apreciação do Poder
Judiciário não somente a lesão, mas também a ameaça a direito (art. 5.º, XXXV).
Paul
Medeiros Krause
Procurador
do Banco Central em Belo Horizonte