Caro leitor, estamos às portas do Natal. Talvez o seu caminho, o meu caminho, percorrido até aqui não tenha sido fácil. Talvez tenha ocorrido a molesta sensação do desânimo, o impertinente, o inconveniente cansaço da alma. Será que não nos perdemos e muitas vezes andamos em círculos, mais ou menos regulares, de maior ou menor diâmetro, como o Padre Donissan num trecho de "Sob o sol de Satã"? Quem sabe se em alguns momentos não terá se insinuado, como um demônio mudo, a labiríntica sensação de desespero? Ou quem sabe uma acabrunhante sensação de impotência absoluta?
É possível que os dias desse ano tenham sido iguais em demasia, que a sua monotonia tenha sido superior à aceitável. Pode ser que as semanas desse moribundo que grita e agoniza tenham tido três ou quatro segundas-feiras, raramente domingos. Parece verdade que os seus erros, que os meus erros, tenham sido demais, tenham se multiplicado e propagado com a velocidade do som. Pode ser que tenhamos arrastado atrás de nós o nosso próprio cadáver, que tenhamos sido devorados pelo tédio.
O esgotamento do corpo é de simples remédio, mas que fazer com o envelhecimento da alma, com as rugas nas dobras do espírito, com as artrites e artroses do eu que nos habita? É relativamente fácil recompor as forças do corpo, mas como refazer, devolver, insuflar forças à alma esgotada?
Uma espécie parecida de esgotamento, de cansaço, está magistralmente descrita n'"O Diário de um Pároco de Aldeia":
"Minha paróquia é uma paróquia como as outras. Todas as paróquias se parecem. As paróquias de hoje, naturalmente. [...]
Minha paróquia é devorada pelo tédio, eis a palavra. Como tantas outras paróquias! O tédio as devora sob nossa vista e nada podemos fazer. Um dia, talvez, o contágio tomará conta de nós, descobriremos em nós esse câncer. Pode-se viver muito tempo com isso.
[...]
Dizia a mim mesmo que o mundo é devorado pelo tédio. Naturalmente, é preciso refletir um pouco para dar-se conta disso; não é fato que se apreenda assim, de relance. É uma espécie de pó. A gente vai e volta sem o ver, respira-o, come-o, bebe-o; é tão tênue, tão fino, que nem ao menos range sob os dentes. Mas se a gente para um segundo, ei-lo que cobre nosso rosto, nossa mão. Temos de nos sacudir, sem cessar, para libertar-nos dessa chuva de cinza. Daí por que o mundo tanto se agita.
Dir-se-á talvez que, há muito, o mundo se familiarizou com o tédio, que o tédio é a verdadeira condição do homem. É possível que a semente espalhada por toda a parte germinasse, aqui e ali, em terreno favorável. Pergunto, porém, se os homens conheceram algum dia esse contágio do tédio, essa lepra! Um desespero malogrado, uma forma torpe do desespero que é, sem dúvida, como que a fermentação de um cristianismo desfigurado."
Interessante a observação do autor. A agitação do nosso tempo teria como causa o nosso tédio, o nosso desespero malogrado, uma forma torpe do desespero, a fermentação de um cristianismo desfigurado.
Esse trecho primoroso d'"O Diário de um Pároco de Aldeia" soa para mim da mesma forma que "No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade. Os dois textos tratam do cansaço da alma:
"No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra."
Não pense o leitor que eu pretenda oferecer soluções fáceis para problemas difíceis. A rigor, nem sequer sei se sou capaz de oferecer uma solução. Contudo, o problema não parece ser a paróquia. Nem o caminho. Não parece ser a repetição em si mesma, a sucessão de atos que se repetem e não parecem atingir fim algum. O problema real é não fazer a exumação, a radiografia do ato, não esquadrinhá-lo, não compreendê-lo em sua inteireza e interioridade.
Enxergar cada momento como uma oportunidade única e irrepetível, ainda que eventualmente assemelhada a outras, como um dom a ser explorado, como uma página a ser escrita, como uma poesia a ser feita, como um jarro vazio a ser preenchido com o vinho novo da alegria. Não são os atos que cansam. É a sua falta de razão. Gosto de pensar em que, no princípio, era o Logos. Logos pode ser traduzido, dizem os exegetas, como Palavra, como Verbo, mas também como Razão, como Sentido. Gosto de pensar em que no princípio, era o Sentido, estava o Sentido, estava a Razão. Estava Aquele que é e dá Sentido e Razão a todas as coisas. Esta mesma Razão, este mesmo Sentido, quer descer aos nossos mínimos atos, como desceu em nossa singela humanidade no tão pouco razoável, no insólito e absurdo estábulo de Belém.
Antes de Jesus Cristo muitas crianças nasceram. Houve uma estranha e monótona repetição de nascimentos. Todos os nascimentos anteriores anunciavam, de alguma forma gritavam aos quatro cantos, profetizavam, a sua vinda, como uma espécie de introdução, de preparação, de prelúdio.
Lá do céu Deus Pai deve ter visto o nosso cansaço, o nosso desânimo, o nosso tédio infinito. Esse câncer, esse pó que nós comíamos sem ver. Deve ter visto a fermentação da antiga aliança desfigurada. E quando a humanidade já não aguentava mais, arrastava-se no meio do caminho, fez seu Filho pousar em nossa humanidade e enchê-la de razão e de sentido. Não poderia ter sido de forma mais bela. Mais doce, mais calma.
É possível que nosso Pai diga ao sol todos os dias: "Vamos de novo!", como pensou Chesterton, pois nosso Pai é mais jovem do que nós, que envelhecemos.
Que o Verbo, depois de pousar em nós, em nossa humanidade, pouse em nossos atos e os encha de sentido. Que nossos atos sejam enxertados na videira. Que Ele derrame o vinho novo, aquele de melhor sabor, no pequeno jarro de cada uma de nossas ações, até nas mais banais e enfadonhas. Que Deus Pai nos diga, diga aos nossos atos, todos os dias, como diz ao sol: "Vamos de novo, ação por ação, encher de sentido o mundo".