sexta-feira, 10 de março de 2023

A PROVIDÊNCIA E A CARIDADE PARA COM O PRÓXIMO

 CAPÍTULO IV

A Providência e a Caridade para com o próximo


Como vimos no capítulo precedente, um dos principais meios pelos quais se exerce a Providência é a caridade para com o próximo, que deve unir todos os homens para que se ajudem mutuamente a caminhar para o mesmo fim: a vida eterna.


Este é sempre um tema de grande interesse, e é importante voltar sempre a ele, sobretudo em nossa época em que a caridade para com o próximo é negada pelo individualismo sob todas as suas formas, e completamente falsificada pelo humanitarismo dos comunistas e dos internacionalistas.


O individualismo não se eleva, por assim dizer, acima da busca do útil e do agradável para o indivíduo, ou no máximo para o grupo relativamente restrito ao qual pertence o indivíduo. Daí a aspereza da luta, às vezes entre os membros de uma mesma família, mas sobretudo entre as classes e os povos. Daí o ciúme, a inveja, a discórdia, o ódio, as divisões mais profundas. É o não reconhecimento do bem comum em graus diversos, e a afirmação quase exclusiva dos direitos individuais ou particulares.


Em oposição a isso, o humanitarismo dos comunistas e dos internacionalistas afirma a tal ponto os direitos da humanidade em geral, mais ou menos identificada de um modo panteísta com Deus, que os direitos dos indivíduos, das famílias, dos povos, desaparecem, e, sob o pretexto da unidade, da harmonia e da paz, provoca-se a pior das confusões e a maior desordem, como a que se vê na Rússia desde a revolução. Querer que, em um organismo, todas as partes tenham a perfeição da cabeça, ou suprimir a cabeça por ser mais perfeita que os membros, é destruir o organismo vivo inteiro.


É totalmente evidente que a verdade se encontra entre esses dois erros extremos e acima deles. A igual distância do individualismo e do comunismo, ela afirma os direitos dos indivíduos, das famílias e dos povos, e também as exigências do bem comum, superior a qualquer bem particular. Assim, uma justa concepção das coisas vela pelo bem individual por meio da justiça comutativa, que regula as trocas entre particulares, da justiça distributiva ou distribuição proporcional dos bens de utilidade comum e dos encargos, e vela também pelo bem comum por meio da justiça legal, segundo a qual devem ser elaboradas leis jutas, e pela equidade, que está atenta ao espírito da lei nas circunstâncias excepcionais em que a letra da lei não pode ser aplicada.


Esses quatro tipos de justiça, admiravelmente distinguidos por Aristóteles, e muito bem explicados por São Tomás em seu tratado de Justitia*, bastam em certo sentido para manter o justo meio-termo acima dos erros contrários do individualismo e do comunismo humanitário. A doutrina de São Tomás sobre este ponto não é ainda suficientemente conhecida; ela poderia ser o tema de trabalhos muito interessantes e muito úteis.


Mas estes quatro tipos de justiça: justiça comutativa, justiça distributiva, justiça legal ou social e equidade, por mais perfeitas que possam tornar-se, e mesmo iluminadas pela fé cristã, não poderiam atingir a perfeição da caridade em relação a Deus e ao próximo, que tem um objeto formal incomparavelmente superior.


Recordemos qual é o objeto primário da caridade e qual é o o seu objeto secundário. Veremos em seguida como praticar essa caridade em relação ao próximo, e como se realiza, por meio dela, o plano da Providência.



* II - II, q. 58, 61,120.



(Reginald Garrigou-Lagrange, no livro "A Providência e a confiança em Deus", Cultor de Livros, págs. 345 a 347).