sexta-feira, 29 de julho de 2016

CARTA ENCÍCLICA "SUPREMI APOSTOLATUS OFFÍCIO", DE LEÃO XIII

 
CARTA ENCÍCLICA
   SUPREMI APOSTOLATUS OFFICIO DE SUA SANTIDADE PAPA LEÃO XIII
  A TODOS OS NOSSOS VENERÁVEIS
IRMÃOS, OS PATRIARCAS,
PRIMAZES, ARCEBISPOS
E BISPOS DO ORBE CATÓLICO,
EM GRAÇA E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE O ROSÁRIO DE NOSSA SENHORA
 
Veneráveis Irmãos,
Saúde e Bênção Apostólica
.
O auxílio de Maria nos males presentes da Igreja 
1. O ofício do Sumo Pontificado, que Nós exercemos, e a dificílima condição dos tempos presentes, cada dia mais nos induzem e como que nos impelem a prover com tanto maior solicitude à tutela e à incolumidade da Igreja, quanto mais graves são as suas provações. Por isto, enquanto, com todas as forças, nos aplicamos a salvaguardar por todos os modos os direitos da Igreja, e a prevenir e afastar os perigos que ou estão iminentes ou já a rondam, sem trégua nos aplicamos a invocar os celestes auxílios, persuadidos de que só com estes a Nossa obra è as Nossas solicitudes poderão conseguir o êxito desejado.
2. Para este fim, nada consideramos mais eficaz e mais poderoso do que tornar-nos propícia, pela devoção e pela piedade, a grande Mãe de Deus, a Virgem Maria. De fato, mediadora, junto a Deus, da nossa paz, e dispensadora das graças celestes, ela está sentada no Céu no mais alto trono de poder e de glória, para conceder o auxílio do seu patrocínio aos homens, que, entre tantas penas e tantas lutas, fadigosamente caminham para a eterna pátria.
Portanto, estando já agora próxima a anual solenidade destinada a receber os inúmeros e assinalados benefícios concedidos ao povo cristão por meio do santo Rosário de Maria, queremos que, este ano, todo o orbe católico com particular devoção dirija à Virgem Maria a mesma piedosa oração, a fim de que, pela sua intercessão, possamos ter a alegria de ver seu Filho aplacado e movido a compaixão das nossas misérias.
Por tal motivo, julgamos bem, ó Veneráveis Irmãos, dirigir-vos esta Carta, para que, conhecidas as Nossas intenções, possais, com a vossa autoridade e com o vosso zelo, estimular a piedade dos fiéis a corresponder-vos diligentemente.
Poder e bondade de Maria 
3. Nos momentos de apreensão e de incerteza, foi sempre o primeiro e sagrado pensamento dos católicos o de recorrerem a Maria, e de se refugiarem na sua maternal bondade. E isto demonstra a firmíssima esperança, antes a plena confiança, que a Igreja Católica com toda razão sempre depositou na Mãe de Deus. De fato, a Virgem Imaculada, escolhida para ser Mãe de Deus, e por isto mesmo feita Co-Redentora do gênero humano, goza junto a seu Filho de um poder e de uma graça tão grande, que nenhuma criatura, nem humana nem angélica, jamais pôde nem jamais poderá atingir uma maior. E, visto como a alegria mais grata para ela é a de ajudar e consolar todo fiel em particular que invoque o seu socorro, não pode haver dúvida de que ela muito mais prazeirosamente deseje acolher, antes, que exulte em acolher, os votos da Igreja toda.
Intervenções de Maria na história de Igreja
4. Mas esta ardente e confiante piedade para com a augusta Rainha do Céu foi posta em mais clara luz quando a violência dos erros largamente difundidos, ou a transbordante corrupção dos costumes, ou o assalto de inimigos poderosos, pareceram pôr em perigo a Igreja militante de Deus.
5. As memórias antigas e modernas e os sagrados fastos da Igreja relembram, de uma parte, as súplicas públicas e particulares e os votos elevados à divina Mãe, e, de outra parte, os auxílios por meio dela obtidos, e a tranqüilidade e a paz pelo Céu concedidas. Daí tiveram origem esses títulos insignes com que os povos católicos a saudaram: Auxiliadora dos cristãos, Socorredora e Consoladora, Dominadora das guerras, Senhora das vitórias, Pacificadora. Entre os quais é principalmente digno de menção o titulo, tão solene, do Rosário, que consagra à imortalidade os seus assinalados benefícios em favor da inteira Família cristã.
6. Nenhum de vós, ó Veneráveis Irmãos, ignora quantas dores e quantas lágrimas, no fim do século XII, proporcionaram à santa Igreja de Deus os hereges Albigenses, que, nascidos da seita dos últimos Maniqueus, haviam infectado de perniciosos erros a França meridional e outras regiões do mundo latino. Espalhando em torno de si o terror das armas, eles tramavam estender o seu domínio pelos morticínios e pelas ruínas. Contra esses péssimos inimigos Deus misericordioso suscitou, como vos é bem conhecido, um homem virtuosíssimo: o ínclito padre fundador da Ordem dominicana. Insigne pela integridade da doutrina, por exemplos de virtude e pelos seus labores apostólicos, ele se preparou com intrépida coragem para travar as batalhas da Igreja Católica, confiando não na força das armas, mas sobretudo na daquela oração que ele, por primeiro, introduziu sob o nome do santo Rosário, e que, ou diretamente ou por meio dos seus discípulos, depois divulgou por toda parte.
Visto como, por inspiração ou por impulso divino, ele bem sabia que, com o auxílio desta oração, poderoso instrumento de guerra, os fiéis poderiam vencer e desbaratar os inimigos, e forçá-los a cessar a sua ímpia e estulta audácia. E é sabido que os acontecimentos deram razão à previsão. De feito, desde quando tal forma de oração ensinada por S. Domingos, foi abraçada e devidamente praticada pelo povo cristão, de um lado começaram a revigorar-se a piedade, a fé e a concórdia, e, de outro, foram por toda parte quebradas as manobras e as insídias dos hereges. Além disto, muitíssimos errantes foram reconduzidos à trilha da salvação, e a loucura dos ímpios foi esmagada por aquelas armas que os católicos haviam empunhado para reprimir a violência.
7. A eficácia e o poder da mesma oração foi, depois experimentada também no século XVI, quando as imponentes forças dos Turcos ameaçavam impor a quase toda a Europa o jugo da superstição da barbárie. Nessa circunstância, o Pontífice S. Pio V, depois de estimular os soberanos cristãos à defesa de uma causa que era a causa de todos, dirigiu todo o seu zelo a obter que a poderosíssima Mãe de Deus, invocada por meio do santo Rosário, viesse em auxílio do povo cristão. E a resposta foi o maravilhoso espetáculo então oferecido ao Céu e à terra; espetáculo que empolgou as mentes e os corações de todos!
Com efeito, de um lado os fiéis, prontos a dar a vida e a derramar o sangue pela incolumidade da religião e da pátria, junto ao golfo de Corinto esperavam impávidos o inimigo; de outro lado, homens inermes, com piedosa e suplicante falange, invocavam Maria, e com a fórmula do santo Rosário repetidamente a saudavam, a fim de que assistisse os combatentes até à vitória. E Nossa Senhora, movida por aquelas preces, os assistiu: porquanto, havendo a frota dos cristãos travado batalha perto de Lepanto, sem graves perdas dos seus desbaratou e matou os inimigos, e alcançou uma esplêndida vitória. Por este motivo o santo Pontífice, para perpetuar a lembrança da graça obtida, decretou que o dia aniversário daquela grande batalha fosse considerado festivo com honra da Virgem das Vitórias; festa que depois Gregório XIII consagrou sob o título do Rosário.
8. Igualmente são conhecidas as vitórias alcançadas sobre as forças dos Turcos, durante o século passado, primeiramente perto de Timisoara, na Rumania, depois perto da ilha de Corfu: com dois dias dedicados à grande Virgem, e após muitas preces a ela elevadas sob a forma do Rosário. Esta foi a razão que levou o Nosso Predecessor Clemente XI a estabelecer que, com prova de gratidão, a Igreja toda celebrasse cada ano a solenidade do santo Rosário.
Louvores do Rosário
9. Portanto, visto que os fatos demonstram o quanto esta oração é agradável à Virgem, e o quanto é eficaz na defesa da Igreja e do povo cristão, em alcançar os divinos favores para os simples indivíduos e para a sociedade inteira, não há-de causar nenhuma admiração que também outros Nossos Predecessores, com palavras de fervoroso encômio, se hajam aplicado a incrementá-la.
Assim Urbano IV afirmou que "cada dia o povo cristão recebe novas graças por meio do Rosário"; Sixto IV proclamou que esta forma de oração "é oportuna, não só para promover a honra de Deus e da Virgem, mas também para afastar os perigos que o mundo nos prepara"; Leão X disse-a "instituída contra os heresiarcas e contra o serpear das heresias"; e Júlio III chamou-lhe "ornamento da Igreja de Roma". Igualmente Pio V, falando desta oração, disse que, "ao difundir-se ela, os fiéis, inflamados por aquelas meditações e afervorados por aquelas preces, começaram de repente a transformar-se com outros homens; as trevas das heresias começaram dissipar-se, e mais clara começou a manifestar-se a luz da fé católica". Finalmente, Gregório XIII declarou que "o Rosário foi instituído por S. Domingos para aplacar a ira de Deus e para obter a intercessão da bem-aventurada Virgem".
O Rosário e os males dos tempos presentes
10. Movido por estas considerações e pelos exemplos dos Nossos Predecessores, julgamos assaz oportuno, nas presentes circunstâncias, ordenar solenes preces a fim de que a Virgem augusta, invocada por meio do santo Rosário, nos impetre de Jesus Cristo, seu Filho, auxílios iguais às necessidades.
11. Bem vedes, ó Veneráveis Irmãos, as incessantes e graves lutas que trabalham a Igreja. Vedes que a moralidade pública e a própria fé - o maior dos bens e o fundamento de todas as outras virtudes estão expostas a perigos sempre mais graves. Assim também vós não só conheceis a Nossa difícil situação e as Nossas múltiplas angústias, mas, pela caridade que a Nós tão estreitamente vos une, as sofreis juntamente conosco.
Porém o fato mais doloroso e mais triste de todos é que tantas almas, remidas pelo sangue de Cristo, como que arrebatadas pelo turbilhão desta época transviada, vão-se precipitando numa conduta sempre mais depravada, e se abismam na eterna ruína; por isto a necessidade do divino auxílio certamente não é menor hoje do que a que era sentida quando o grande Domingos, para curar as feridas da sociedade, introduziu a prática do Rosário mariano. Iluminado do alto, ele viu claramente que para os males do seu tempo não havia remédio mais eficaz do que reconduzir os homens a Cristo, que é "caminho, verdade e vida", mediante a freqüente meditação da Redenção por Ele operada; e interpor junto a Deus a intercessão dessa Virgem a quem foi concedido "aniquilar todas as heresias".
Por este motivo ele dispôs a prática do Rosário de modo que fossem sucessivamente recordados os mistérios da nossa salvação, e a este dever da meditação se entremeasse como que uma mística coroa de saudações angélicas, intercaladas pela oração a Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nós, pois, que andamos procurando um igual remédio para não diversos males, não duvidamos de que a mesma oração, pelo santo Patriarca introduzida com tão notável vantagem para o mundo católico, tornar-se-á eficacíssima para aliviar também as calamidades dos nossos tempos.
12. Portanto, em consideração destas razões, não somente exortamos calorosamente todos os cristãos a praticarem, sem se cansar, o piedoso exercício do Rosário, publicamente, ou em particular, nas suas casas e famílias, mas também queremos que todo o mês de Outubro do ano em curso seja consagrado e dedicado à celeste Rainha do Rosário.
Prescrições e privilégios para o mês de outubro
13. Estabelecemos, pois, e ordenamos que, em todo o mundo católico, a solenidade de Nossa Senhora do Rosário seja este ano celebrada com particular devoção e com esplendor de culto. Ordenamos, além disso, que, do dia primeiro de Outubro ao dia dois do seguinte mês de Novembro, em todas as igrejas paroquiais, e, se os Ordinários o julgarem vantajoso e conveniente, também nas outras igrejas e nas capelas dedicadas à Mãe de Deus, se recitem devotamente ao menos cinco dezenas do Rosário, com o acréscimo das Ladainhas Lauretanas. Depois, desejamos que, quando o povo se reunir para tais orações, ou se ofereça o santo Sacrifício da Missa, ou se exponha solenemente o SS. Sacramento, e no fim se dê aos presentes a Bênção com a Hóstia sacrossanta.
14. Vivamente aprovamos que as Confrarias do Rosário, seguindo uma antiga tradição, façam solenes procissões pelas ruas da cidade, em pública demonstração da sua fé. Mas onde, pela adversidade dos tempos, isto não for possível, não duvidamos de que tudo quanto por este lado for subtraído ao culto público será compensado por uma concorrência mais numerosa nas igrejas; e que o fervor da piedade se manifestará por uma prática mais diligente das virtudes cristãs. Em favor, pois, daqueles que executarem tudo quanto mais acima dispusemos, abrimos de bom grado os celestes tesouros da Igreja, a fim de que achem neles o estímulo e ao mesmo tempo o prêmio da devoção.
Por isto, àqueles que, dentro do tempo estabelecido, participarem da pública recitação do Rosário com as Ladainhas, e orarem segundo a Nossa intenção, concedemos, para cada vez, a Indulgência de sete anos e de sete quarentenas: Queremos, igualmente, que de tal benefício possam fruir aqueles que, impedidos por legítima causa de praticar em público o piedoso exercício, o praticarem em particular, e orarem também segundo a Nossa intenção.
15. Depois, àqueles que, dentro do sobredito tempo, ao menos por dez vezes cumprirem a mesma prática, ou em público nas igrejas ou, por justos motivos, nas suas casas, concedemos a Indulgência plenária, desde que à piedosa prática juntem a Confissão e a Comunhão.
16. Esta Indulgência plenária das suas culpas concedemo-la também a todos os que, na mesma solenidade da bem-aventurada Virgem do Rosário ou num dos oito dias seguintes, igualmente se aproximarem do tribunal da Penitência e da Mesa do Senhor, e em alguma igreja rezarem, segundo a Nossa intenção, pelas necessidades da santa Igreja.
Esperanças do Sumo Pontífice
17. Eia, pois, Veneráveis Irmãos: pelo zelo que tendes da honra de Maria e da salvação da sociedade humana, esforçai-vos por alimentar a devoção e por aumentar a confiança do povo para com a grande Virgem. Nós pensamos seja de atribuir-se a divino favor o fato de, mesmo em momentos tão procelosos para a Igreja como estes, haver-se mantido sólida e florescente, na maior parte do povo cristão, a antiga veneração e piedade para com a Virgem augusta. Mas agora esperamos que, incitados por estas Nossas exortações e inflamados pelas vossas palavras, os fiéis se hão de colocar com sempre mais ardente entusiasmo sob a proteção e assistência de Maria, e continuarão a amar com crescente fervor a prática do Rosário, que nossos pais costumavam considerar não só como um poderoso auxílio nas calamidades, mas também como um distintivo honorifico da piedade cristã. A celeste Padroeira do gênero humano acolherá benigna as humildes e unânimes preces que lhe dirigirmos, e, complacente, obter-nos-á que os bons se revigorem na prática da virtude; que os desviados caiam em si e se emendem; e que Deus, justo vingador das culpas, dobrando a misericordiosa clemência, afaste os perigos, e restitua ao povo cristão e à sociedade a tão desejada tranqüilidade.
18. Confortados por esta esperança, com os mais ardentes votos do Nosso coração rogamos vivamente a Deus, pela intercessão d'Aquela em quem Ele depositou a plenitude de todos os bens, que vos conceda a vós, Veneráveis Irmãos, as mais escolhidas e mais abundantes graças celestes, das quais é auspício e penhor a Bênção Apostólica, que de coração concedemos a vós, ao vosso clero e aos povos confiados aos vossos cuidados.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, a 1 de Setembro de 1883, sexto ano do Nosso Pontificado.
 
LEÃO PP. XIII

CARTA ENCÍCLICA "LAETITIAE SANCTAE", PAPA LEÃO XIII

CARTA ENCÍCLICA

 LAETITIAE SANCTAE DE SUA SANTIDADE PAPA LEÃO XIII
A TODOS OS NOSSOS VENERÁVEIS
IRMÃOS, OS PATRIARCAS,
PRIMAZES, ARCEBISPOS
E BISPOS DO ORBE CATÓLICO,
EM GRAÇA E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE O ROSÁRIO DE NOSSA SENHORA
 

Veneráveis Irmãos,
Saúde e Bênção Apostólica

Gratidão do Papa para com Maria 

1. A santa alegria que nos trouxe o feliz transcurso do quinquagésimo aniversário da Nossa sagração episcopal foi intensamente aumentada pelo fato de termos tido como participantes da Nossa alegria os católicos de todo o mundo, estreitados como filhos em torno do Pai, numa esplêndida manifestação de fidelidade e de amor. Nisto, com renovada gratidão, reconhecemos e exaltamos um desígnio da Divina Providência sumamente benévolo para conosco, e, ao mesmo tempo, assaz profícuo para a sua Igreja. Mas o Nosso ânimo sente-se impelido a saudar e louvar também a augusta Mãe de Deus, que deste benefício foi poderosa mediadora junto a Deus. A sua singular bondade, que no longo e mutável período da Nossa vida temos experimentado em vários modos eficaz, brilha cada dia mais manifesta diante dos nossos olhos, e, ferindo-nos suavissimamente o coração, robustece-o com confiança sobrenatural.

Afigura-se-nos ouvir a própria voz da Rainha do Céu, ora benevolamente encorajar-nos no meio das terríveis adversidades da Igreja, ora ajudar-nos, com largueza de inspirações, nas decisões a tomar para o bem comum, ora também advertir-nos a estimular o povo cristão à piedade e ao culto da virtude. já muitas vezes, no passado, fizemos para nós um grato dever de corresponder a estes desejos da Virgem. Ora, entre as utilidades que com a sua bênção recolhemos das Nossas exortações, justo é recordar o extraordinário desenvolvimento da devoção do seu santo Rosário, seja pelo incremento e pela constituição de confrarias sob este título, seja pela divulgação de escritos doutos e oportunos, seja também pela inspiração dada a verdadeiras obras-primas artísticas.

O Rosário e os males do nosso tempo

2. E hoje, como que acolhendo a mesma voz da amorosíssima Mãe, com a qual ela nos repete: "Clama, nunca te canses", apraz-nos tornar a falar-vos, Veneráveis Irmãos, do Rosário mariano, agora que se aproxima o mês de Outubro: mês que quisemos consagrado a esta cara devoção, e que enriquecemos com os tesouros das santas indulgências. A Nossa palavra, todavia, não terá o fim imediato de tributar novos louvores a uma oração já, por si mesma, tão excelente, nem de estimular os fiéis a praticá-la com sempre maior fervor; falaremos, antes, de algumas preciosíssimas vantagens que dela podem derivar, o mais possível correspondentes às condições e às necessidades dos homens e dos tempos presentes. Porque estamos absolutamente convencido de que, se a prática do Rosário for retamente seguida, de modo a poder ostentar toda a eficácia que lhe é intrínseca, não somente aos simples indivíduos, mas também a toda a sociedade, trará a maior utilidade.

3. Sabem todos o quanto Nós, pelo dever do Nosso supremo apostolado, nos temos aplicado a contribuir para o bem da sociedade, e o quarto ainda estamos disposto a fazê-lo, com o auxílio de Deus. Com freqüência temos advertido os governantes a não fazerem e a não aplicarem leis que não sejam conformes à mente divina, norma de suma justiça. E, por outra parte, mais de uma vez temos exortado aqueles cidadãos que, ou por inteligência, ou por méritos, ou por nobreza do sangue, ou por haveres, estão em posição de privilégio em relação aos outros, a defenderem e a promoverem, em união de entendimentos e de forças, os supremos e fundamentais interesses da sociedade.

4. Mas, na estado presente da sociedade civil, sobejas são as causas que debilitam os ligames da ordem pública e desviam os povos da justa honestidade dos costumes. Todavia, os males que mais perigosamente minam o bem comum parecem-nos ser principalmente os três seguintes: "aversão à vida humilde e laboriosa; o horror ao sofrimento; o esquecimento dos bens futuros, objeto das nossas esperanças".

A aversão ao viver moderno

5. Lamentamos - e conosco devem reconhecê-lo e deplorá-lo mesmo aqueles que não admitem outra regra senão a luz da razão, nem outra medida afora a utilidade, - lamentamos que uma chaga verdadeiramente profunda tenha ferido o corpo social desde quando se começou a descurar os deveres e as virtudes que formam o ornamento da vida simples e comum. De fato, daí se segue que, nas relações domésticas, os filhos, intolerantes de toda educação que não seja a da moleza e da volúpia, recusam arrogantemente a obediência que a própria natureza lhes impõe. Por esse mesmo motivo os operários se afastam do seu próprio mister, fogem do labor, e, descontentes com a sua sorte, levantam o olhar a metas demasiado altas, e aspiram a uma inconsiderada repartição dos bens.

Ao mesmo tempo dai se segue o afanar-se de muitos que, depois de abandonarem o torrão natal, buscam o bulício e as numerosas seduções da cidade. Por este motivo ainda, veio a faltar o necessário equilíbrio entre as classes sociais; tudo é flutuante; os ânimos são agitados por invejas e rivalidades; a justiça é abertamente violada; e aqueles que foram iludidos nas suas esperanças procuram perturbar a tranqüilidade pública com sedições, com desordens e com a resistência aos defensores da ordem pública.
As lições do mistérios gozosos
6. Pois bem: contra estes males pensamos que se deve buscar remédio no Rosário de Maria, composto de uma bem ordenada série de orações e da piedosa contemplação de mistérios relativos a Cristo Redentor e a sua Mãe. Expliquem-se de forma exata e popular os mistérios gozosos, apresentando-os aos olhos dos fiéis como outros tantos quadros e vivas figurações das virtudes. E assim cada um verá que fácil e rica mina eles oferecem de ensinamentos aptos para arrastar com maravilhosa suavidade as almas à honestidade da vida.
7. Eis diante do nosso olhar a Casa de Nazaré, onde toda santidade, a humana e a divina, colocou a sua morada. Que exemplo de vida comum! Que perfeito modelo de sociedade! Ali há simplicidade e candura de costumes; perpétua harmonia de almas; nenhuma desordem; respeito mútuo; e, enfim, o amor: mas não o amor falso e mendaz, e sim aquele amor integral, que se alimenta na prática dos próprios deveres, e tal que atrai a admiração de todos.
Ali não falta a solicitude de se proporcionar a si mesmos tudo quanto é necessário à vida, mas com o "suor da fronte", e como convém àqueles que, contentando-se com pouco, se esforçam antes por diminuir a sua pobreza do que por multiplicar os seus haveres. E, sobre tudo isto, reina ali a maior serenidade de ânimo e alegria de espírito: duas coisas que sempre acompanham a consciência do dever cumprido.
8. Ora, estes exemplos de modéstia e de humildade, de tolerância da fadiga, de bondade para com o próximo e de fiel observância dos pequenos deveres da vida quotidiana, e, numa palavra, os exemplos de todas estas virtudes, assim que entram nos corações e nele se imprimem profundamente, certamente produzem nele pouco a pouco a desejada transformação dos pensamentos e dos costumes.
Então os deveres do próprio estado não mais serão nem descurados nem considerados enfadonhos, mas serão, antes, agradáveis e deleitáveis; e a consciência do dever, imbuída de senso de alegria, será sempre mais decidida no obrar o bem.
Por conseqüência, os costumes tornar-se-ão mais brandos sob todos os aspectos; a convivência familiar transcorrerá no amor e na alegria; as relações com os outros serão pautadas por um maior respeito e caridade. E, se estas transformações se estenderem dos indivíduos às famílias, às cidades, aos povos e às suas instituições, é fácil ver que imensas vantagens devam daí derivar para a sociedade inteira.
A aversão ao sacrifício
9. O segundo mal funestíssimo, que Nós nunca deploraremos bastante, porque ele sempre mais difusa e ruinosamente envenena as almas, é a tendência a fugir da dor e a afastar por todos os meios as adversidades.
De feito, a maioria dos homens não consideram mais, como deveriam, a serena liberdade de espírito como um prêmio para quem exercita a virtude e suporta vitoriosamente perigos e trabalhos; mas excogitam uma quimérica perfeição da sociedade, em que, removido todo sacrifício, se deparem todas as comodidades terrenas.
Ora, este agudo e desenfreado desejo de uma vida cômoda debilita fatalmente as almas, que, mesmo quando não se arruínam totalmente, ficam, sem embargo, tão enervados, que primeiro cedem vergonhosamente em face dos males da vida, e depois sucumbem miseravelmente.
As lições dos mistérios dolorosos
10. Pois bem: ainda contra este mal é bem justificado esperar-se do Rosário de Maria um remédio que, pela força do exemplo, pode grandemente contribuir para fortalecer os ânimos. E isto se obterá se os homens, desde a sua primeira infância, e depois constantemente em toda a sua vida, se aplicarem, no recolhimento, à meditação dos mistérios dolorosos.
Através destes mistérios vemos que Jesus, "guia e aperfeiçoados da fé", começou a fazer e a ensinar, a fim de que víssemos n'Ele próprio o exemplo prático dos ensinamentos que Ele daria à nossa humanidade, acerca da tolerância da dor e dos trabalhos; e o exemplo de Jesus chegou a tal ponto, que, voluntariamente e de grande coração, Ele mesmo abraçou tudo o que há de mais duro de suportar.
Com efeito, vemo-lo como um ladrão, julgado por homens iníquos, e feito alvo de ultrajes e de calúnias. Vemo-lo flagelado, coroado de espinhos, crucificado considerado indigno de continuar a viver, e merecedor de morrer entre os clamores de todo um povo.
Consideremos a aflição de sua santíssima Mãe, cuja alma não foi somente roçada, mas verdadeiramente "traspassada" pela "espadácia dor"- de modo que ela mereceu ser chamada, e realmente se tornou, a Mãe das dores.
11. Todo aquele que se não contentar com olhar, porém meditar amiúde exemplos de tão excelsa virtude, oh! como se sentirá impelido a imitá-los! Para esse, ainda que seja "maldita a terra, e faça germinar espinhos e abrolhos", ainda que o espírito seja oprimido pelos sofrimentos, ou o corpo pelas doenças, nunca haverá nenhum mal causado pela perfídia dos homens ou pelo furor dos demônios, nunca haverá calamidade, pública ou privada, que ele não consiga superar com paciência.
É, pois, realmente verdadeiro o dito: "É de cristão fazer e suportar coisas árduas"; porque todo aquele que não quiser ser indigno desse nome não pode deixar de imitar Cristo que sofre. E repare-se em que como resignação não entendemos a vã ostentação de um ânimo endurecido à dor, como o tiveram alguns filósofos antigos; mas sim essa resignação que se funda no exemplo d'Aquele que "em lugar do gozo que tinha diante de si, suportou o suplício da Cruz, desprezando a ignomínia" (Heb 12, 2); essa resignação que, depois de pedir a Ele o necessário auxilio da graça, de modo algum recusa afrontar as adversidades; antes, alegra-se com elas, e considera um lucro qualquer sofrimento, por mais acerbo que seja.
A Igreja Católica sempre teve, e tem ainda agora, insignes campeões de tal doutrina: homens e mulheres, em grande número, em todas as partes do mundo, de todas as condições. Estes, seguindo as pegadas de Cristo, em nome da fé e da virtude suportam contumélias e amarguras de todo gênero, e têm como seu programa, mais com os fatos do que com as palavras, a exortação de S. Tomé: "Vamos também nós, e morramos com Ele" (Jo. 11, 16).
12. Oh! praza ao Céu que exemplos de tão admirável fortaleza se multipliquem sempre mais, a fim de que deles brote segurança para a sociedade, e virtude e glória para a Igreja.
O descaso dos bens eternos
13. O terceiro mal para o qual é preciso achar um remédio é particularmente próprio dos homens dos nossos dias Com efeito, os homens dos tempos passados, mesmo quando com excessiva paixão procuravam as coisas terrenas, contudo não desprezavam totalmente as celestes; antes, os mais sábios entre os próprios pagãos ensinaram que esta nossa vida é um lugar de hospedagem e uma estação de passagem, antes que uma morada fixa e definitiva.
Ao contrário, muitos dos modernos, embora educados na fé cristã, procuram de tal modo os bens transitórios desta terra, que não somente esquecem uma pátria melhor na eternidade bem-aventurada, mas, por excesso de vergonha, chegam a cancelá-la completamente de sua memória, contra a advertência de S. Paulo: "Não temos aqui uma cidade permanente, porém demandamos a futura" (Heb. 13, 14).
Quem quiser examinar as causas desta aberração logo notará que a primeira delas é a convicção de muitos de que o pensamento das coisas eternas extingue o amor da pátria terrena e impede a prosperidade do Estado. Calúnia odiosa e insensata.
E, de fato, os bens que esperamos não são de natureza tal que absorvam os pensamentos do homem até o ponto de o distrair inteiramente do cuidado dos interesses terrenos. O próprio Cristo embora recomendando-nos procurarmos antes de tudo o reino de Deus, com isto nos insinua que não devemos descurar tudo o mais.
E, de fato, se o uso dos bens terrenos e dos gozos honestos que deles derivam servem de estímulo à virtude; se o esplendor e o bem-estar da, cidade terrena - que depois redundam em glória da sociedade humana - são considerados como uma imagem do esplendor e da magnificência da cidade eterna, eles não são nem indignos de homens racionais, nem contrários aos desígnios de Deus.
Porque Deus é ao mesmo tempo autor da natureza e da graça; e por isto não pode ter disposto que uma obste à outra e estejam entre si em luta; mas, ao contrário, que, amigavelmente unidas, nos guiem, por uma trilha mais fácil, àquela eterna felicidade a que, embora mortais, somos destinados.
14. Mas os homens dados ao prazer e egoístas, que de tal modo mergulham e aviltam os seus pensamentos nas coisas caducas a ponto de não saberem elevar-se a mais alto, estes, antes que procurarem os bens eternos através dos bens sensíveis de que gozam, perdem completamente de vista a eternidade, caindo assim numa condição verdadeiramente abjeta. Na verdade, Deus não poderia infligir ao homem punição mais terrível do que abandonando-o por toda a vida às seduções dos vícios, sem ter jamais um olhar para o Céu.
As lições dos mistérios gloriosos
15. A este perigo não estará exposto aquele que, rezando o santo Rosário, meditar com atenção e com freqüência as verdades contidas nos mistérios gloriosos. Desses mistérios, com efeito, brilha na mente dos cristãos uma luz tão viva, que nos faz descobrir aqueles bens que o nosso olho humano nunca poderia perceber, mas que Deus - assim o cremos com fé inabalável - preparou "para aqueles que o amam".
Deles aprendemos, além disto, que a morte não é um esfacelamento que tudo perde e destrói, mas sim uma simples passagem e uma mudança de vida. Aprendemos que o caminho do céu está aberto a todos; e, quando observamos Cristo que volta ao Céu, recordamos a sua bela promessa: "Vou preparar-vos o lugar".
Aprendemos que haverá um tempo em que "Deus enxugará toda lágrima dos nossos olhos; em que não haverá mais nem lutos, nem pranto, nem dor, mas estaremos sempre com o Senhor, semelhantes a Deus, porque o veremos como Ele é, bebendo na torrente das suas delícias, concidadãos dos santos", em feliz união com a grande Mãe e Rainha.
16. Uma alma que se nutra destas verdades deverá necessariamente inflamar-se delas e repetir a frase de um grande. Santo: "Oh! como me parece sórdida a terra quando olho o Céu"; deverá necessariamente alegrar-se ao pensamento de que "um instante de um leve sofrimento nosso produz em nós uma medida eterna de glória".
E, verdadeiramente, só aqui está o segredo de harmonizar o tempo com a eternidade, a cidade terrena com a celeste, e de formar caracteres fortes e generosos. E se estes se tornarem muito numerosos, sem dúvida estará com isso consolidada a dignidade e a grandeza do Estado; e florescerá tudo o que é verdadeiro, tudo o que é bom, tudo o que é belo; florescerá em harmonia com aquela norma que é o sumo princípio e a fonte inexaurível de toda verdade, de toda bondade e de toda beleza.
17. Ora, quem não vê a verdade disso que havemos observado desde o princípio, isto é, de que preciosos bens é fecundo o santo Rosário? O quanto ele é maravilhosamente eficaz em curar os males dos nossos tempos, e em opor um dique aos gravíssimos males da sociedade?
As confrarias do Rosário
18. Mas, como cada um facilmente compreende, de tal eficácia serão mais direta e mais largamente participantes os membros das sacras confrarias do Rosário, porque a ela adquirem um direito particular, quer pela sua união fraterna, quer pela sua devoção especial à Virgem Santíssima.
Tais sodalícios autorizadamente aprovados pelos Romanos Pontífices e por eles enriquecidos de privilégios e de tesouros de indulgências, têm uma forma própria de ordenação e de disciplina. Promovem reuniões em dias determinados, e neles são fornecidos meios mais adequados para florescer na piedade e para prestar úteis serviços à própria sociedade civil. Eles são como que falanges militantes que, guiadas e amparadas pela celeste Rainha, combaterão as batalhas de Cristo, em virtude dos seus santos mistérios.
E em todas as ocasiões, mas especialmente em Lepanto, pôde-se ver como a Virgem se compraz com as orações, as festas e as procissões desses seus devotos.
19. Bem justo é, pois, que não somente os filhos do patriarca S. Domingos - certamente obrigados mais do que os outros, por motivo da sua vocação, - mas também todos aqueles que têm cura de almas -especialmente nas igrejas onde essas confrarias estão canonicamente eretas - se apliquem com todo o seu zelo a multiplicá-las, desenvolvê-las e assisti-las. Antes, ardentemente desejamos que também se dediquem a este trabalho aqueles que empreendem missões, seja para levar a doutrina de Cristo aos infiéis, seja para reforçá-la nos fiéis.
20. Não duvidamos de que, pelas exortações de todos estes, muitos cristãos estarão prontos não só a inscrever-se nessas confrarias, mas também a esforçar-se, por todos os meios, para colher as já indicadas vantagens espirituais que formam como que a razão de ser e, por assim dizer, a substância do santo Rosário. Depois, o exemplo dos membros das confrarias arrastará também os outros fiéis a uma maior estima e devoção ao Rosário; os quais, assim estimulados, porão todo o seu empenho - como Nós vivamente desejamos - em tirar também, na mais larga medida, salutares vantagens desta prática.
21. Eis aí a esperança que nos sorri. É ela que, no meio de tantas calamidades públicas, nos guia e profundamente nos consola. Digne-se Maria, Mãe de Deus e dos homens, inspiradora e mestra do santo Rosário, de realizar plenamente esta esperança, acolhendo as preces comuns.
Nós, ó Veneráveis Irmãos, temos confiança de que, pelo zelo de cada um de vós, os vossos ensinamentos e os Nossos votos produzirão toda espécie de bem, e contribuirão, em particular, para a prosperidade das famílias e para a paz dos povos.
Enquanto isso, em penhor dos favores celestes e em testemunho da Nossa benevolência, no Senhor concedemos a cada um de vós, ao vosso clero e ao vosso povo a Bênção Apostólica.
Dado em Roma, junto a S. Pedro, a 8 de Setembro de 1893, décimo sexto ano do Nosso Pontificado.
 
LEÃO XIII PAPA

"O ESCAPULÁRIO E SEUS PRIVILÉGIOS", DOM ESTÊVÃO BETTENCOURT

 
O Escapulário e seus Privilégios
Como se explicam as promessas anexas ao escapulário do Carmo? A Justiça Divina poderia, simplesmente em atenção a essa insígnia, permitir que um pecador endurecido não seja condenado?
 
Dividiremos a resposta em três etapas : 1) origem do escapulário como tal; 2) privilégios anexos ao escapulário do Carmo; 3) valor histórico e significado religioso dos mesmos.
 
1. Origem do escapulário
 
O escapulário (do latim scapulo, espádua) é uma longa peça de pano que das espáduas desce sobre o peito e as costas de quem a traja, recobrindo a respectiva túnica. Inicialmente servia de avental durante o trabalho manual. Muito usado entre os monges, tornou-se uma das insígnias características das ordens monásticas e religiosas em geral.
 
Na Idade Média as Ordens Religiosas propriamente ditas foram criando em torno de si o que se chama «as Ordens Terceiras» (ou as famílias de «Oblatos» e «Oblatas»), compostas de pessoas seculares desejosas de viver em contato assíduo com os mosteiros e conventos (a «Ordem Segunda» era o ramo feminino, enclausurado, de uma Ordem masculina dita «Primeira»). Os Terciários e Oblatos receberam, como distintivo de seu estado, o escapulário. Aos poucos, este foi sendo adotado até pelas Confrarias, associações remotamente vinculadas a determinada Ordem. Então, para facilitar o uso da insígnia, os superiores religiosos resolveram admitir, ao lado do escapulário grande, o escapulário pequeno, que consta de dois retângulos de pano de lã ligados entre si por duas fitas, de sorte a poder ser trazidos pelos irmãos dia e noite sobre o peito e as costas. É esta a forma hoje em dia mais comumente adotada pelos fiéis que vivem no mundo.
 
Distinguem-se atualmente vários tipos de escapulários segundo as diversas Ordens Religiosas e as modalidades da piedade cristã; o mais famoso é o escapulário marrom ou negro da Ordem do Carmo, ao lado do qual se podem citar: o escapulário branco, da SS, Trindade, propagado a partir de 1200; o escapulário negro, das Sete Dores de Maria, devido aos Servitas, a partir de 1255; o escapulário azul, da Imaculada Conceição, concedido em 1691 e 1710 aos Teatinos; o escapulário vermelho, dedicado à Paixão do Senhor, difundido pelos Lazaristas e aprovado em 1847.
 
O uso do escapulário não visa apenas ornamentar o respectivo portador. Ao contrário, tem valor religioso digno de nota: significando a filiação a uma Ordem ou Confraria, implica, em quem o traz, o desejo sincero de praticar os conselhos evangélicos (cf. Mt 19,21), na medida em que são aplicáveis à vida no século. Além disto, significa participação nos bens espirituais de que goza a respectiva família religiosa; costuma ser bento e entregue aos fiéis segundo determinado ritual, tornando-se assim um sacramental, ou seja, objeto que comunica a graça em quem o usa com fé e caridade. Vê-se, por conseguinte, que, embora sejam múltiplos os tipos de escapulário, têm todos a mesma finalidade: significar e, ao mesmo tempo, fomentar o serviço aprimorado de Deus, que é a grande devoção de todos os cristãos.
 
2. Os privilégios anexos ao escapulário do Carmo
 
Dentre os favores espirituais outorgados ao uso do escapulário, sobressaem os que se prendem ao da Ordem do Carmo. Quais são precisamente?
Enunciam-se dois : a) o privilégio de uma boa morte; b) a pronta libertação do purgatório.
a) A graça da boa morte teria sido prometida pela SS. Virgem numa aparição a S. Simão Stock, sexto Superior Geral dos Carmelitas (1242-1265), em Cambridge, aos 16 de julho de 1251. Trazendo em mão o hábito da Ordem, teria dito a excelsa Senhora : «Eis o privilégio que dou a ti e a todos os filhos do Carmelo: todo aquele que morrer, revestido por este hábito, será salvo».
b) O privilégio «sabatino» afirma que a Virgem SS. liberta do purgatório os irmãos filiados à Ordem do Carmelo no primeiro sábado após a morte de cada um. Este favor, dizem, foi revelado pela própria Mãe de Deus ao Papa João XXII, provavelmente na véspera de sua eleição. O mesmo Pontífice terá anunciado aos fiéis tal graça e várias outras concedidas à Ordem do Carmo mediante a bula «Sacratissimo uti culmine» de 3 de março de 1317.
 
 
a) Os documentos sobre os quais se baseia a afirmação dos dois privilégios têm despertado a atenção dos estudiosos, levando-os a perguntar se são fontes históricas de todo fidedignas.
Examinemos o que consta.
 
O primeiro documento que refere a aparição da Bem-aventurada Virgem a S. Simão Stock data do ano de 1430 aproximadamente; é chamado «Viridarium» do Prior Geral Carmelita João Grossi (cf. Daniel a S. Virg. Maria, Speculum Carmelitarum I. Antverpia 1680,131). Entre o ano em que se terá dado a visão (1251) e a data acima, a história não apresenta documento algum que relate o caso.
 
No ano de 1642 apareceu pela primeira vez em público, por iniciativa do Pe. Provincial João Chéron O. C., uma carta circular de Simão Stock aos religiosos de sua Ordem, carta em que o Prior Geral referia a aparição e as palavras de Maria. Este documento teria sido ditado pelo Santo a seu secretário, Pe. Swanyngton. Denegam fé a esse instrumento os historiadores modernos, inclusive os Carmelitas (cf. Annales Ord. Carm. 1927 e 1929).
 
Quanto ao privilégio «sabatino», desde o séc. XVII contesta-se a autenticidade da bula de João XXII que o anuncia ao mundo cristão. Entre a data que este documento traz (1317) e o ano de 1461 não há menção da bula na tradição. O primeiro autor que a deu a conhecer foi o Carmelita Balduíno Laersius (+1483). Hoje em dia não há quem afirme a autenticidade de tal documento. O próprio Pe. Zimmermann na sua coleção de documentos referentes à Ordem do Carmo (Monumenta histórica Carmelitana I 356-363) renunciou a defendê-la. — No texto mesmo da bula paira dúvida sobre uma das passagens principais: lê-se no original latino que a Virgem SS. libertará do purgatório subito (em breve, sem demora) ou, conforme outros códigos, sabbato, no sábado seguinte à morte, as almas dos seus fiéis.
 
Ademais notam os historiadores que até o séc. XV os membros da Ordem do Carmo não atribuíam maior importância ao uso do escapulário do que os filhos de outras Ordens.
 
Eis o que, do ponto de vista historiográfico, se poderia dizer sobre as promessas anexas ao escapulário do Carmo.
 
b) Pergunta-se agora : que resulta disso tudo para a piedade dos fiéis?
 
Deve-se reconhecer que uma série de Papas, a partir do séc. XVI, tem favorecido o uso do escapulário do Carmo, enriquecendo-o com novas indulgências e permitindo sejam anunciadas aos fiéis as duas promessas acima. Ao fazer isso, porém, nenhum Pontífice intencionou dar definição dogmática sobre o assunto; os Papas apenas quiseram fazer da piedosa crença vigente um estímulo para a piedade dos fiéis. As promessas anexas ao escapulário do Carmo, por conseguinte, ficam pertencendo ao setor das revelações particulares, que cada cristão é livre de admitir ou não, seguindo os critérios que lhe pareçam mais fidedignos.
 
Observe-se, porém, que o privilegio da boa morte (a primeira das duas promessas) jamais poderá ser entendido em sentido mecânico, como se o uso mesmo do escapulário, independentemente do teor de vida moral do cristão, fosse suficiente para garantir a salvação eterna. Não; o portador do escapulário deverá cultivar as virtudes cristãs para que a dita insígnia lhe possa valer como penhor de especial tutela de Maria SS. na hora da morte. Foi o que o Papa Leão XIII quis inculcar, quando, ao aprovar o Ofício de S. Simão Stock para os católicos ingleses, mandou inserir no texto respectivo uma palavrinha que não se achava no original apresentado a S. Santidade: «Todo aquele que morrer piedosamente trajando esse hábito, não sofrerá as chamas do inferno». Consequentemente comenta J.-B. Terrien:
 
«Certamente os antigos consideravam o escapulário como penhor de predestinação, mas não chegavam, como penso, ao ponto de dizer que não restem dúvidas justificadas a respeito da salvação de um pecador que na hora da morte rejeite o amparo da religião, embora tenha trazido até o último suspiro a veste sagrada de Maria» (La Mère de Dieu et Ia Mère des hommes IV 304).
 
As boas disposições espirituais são também exigidas por um comentário do privilégio, comentário atribuído a S. Simão Stock:
 
«Conservando, meus irmãos, esta palavra em vossos corações, esforçai-vos por assegurar vossa eleição mediante boas obras e por jamais desfalecer; vigiai em ação de graças por tão grande benefício; orai incessantemente a fim de que a promessa a mim comunicada se cumpra para a glória da SS. Trindade,e da Virgem sempre bendita» (cf. Bento XIV, De festis B. V. c. VI § § 7-8).
 
No tocante ao segundo privilégio, devem-se observar os termos precisos segundo os quais a Santa Sé se tem referido a ele. Um decreto do S. Oficio datado de 15 de fevereiro de 1615 (sob o Papa Paulo V) e renovado pela S. Congregação das Indulgências a 1o de dezembro de 1885 assinala a atitude definitiva do magistério da Igreja sobre o assunto: sem proferir palavra acerca da autenticidade da controvertida bula de João XXII, admite que a Virgem Maria recobrirá com a sua proteção materna, principalmente no sábado (fórmula devida à ambiguidade do texto acima referido: súbito,. sabbato...?), dia consagrado ao seu culto, as almas daqueles que na terra tiverem sido seus fiéis servos.
 
Aos 4 de julho de 1908, a S. Congregação aprovou uma Súmula de indulgências e privilégios concedidos à Confraria do Escapulário do Carmo, em que se lê verbalmente o seguinte:
 
«O privilégio comumente chamado sabatino, de João XXII, aprovado e confirmado por Clemente VII, Ex clementis, aos 12 de aposto de 1530, por Pio V, Superna dispositione, aos 18 do fevereiro de 1566, por Gregório XIII, Ut Laudes, aos 18 de setembro de 1577, e por outros, assim como pelo decreto da S. Inquisição Romana sob Paulo V, aos 20 de janeiro de 1613, declara: ‘É permitido aos Padres Carmelitas pregar que os fiéis podem admitir a piedosa crença no auxilio concedido após a morte aos Religiosos e confrades da Associação de Nossa Senhora do Monte Carmelo’. Com efeito, é permitido crer que a SS. Virgem socorra às almas dos Religiosos e confrades falecidos em estado de graça, contanto que tenham trazido durante a vida o escapulário, tenham guardado a castidade do seu estado e recitado o Oficio Parvo da Virgem ou, se não sabem ler, tenham observado os jejuns da Igreja e praticado a abstinência de carne às quartas e sábados, a menos que a festa de Natal caia num desses dias. As orações contínuas de Maria, seus piedosos sufrágios, seus méritos e sua especial proteção lhes são assegurados após a morte, principalmente no sábado, que è o dia consagrado pela Igreja à SS. Virgem».
 
Neste documento chama a nossa atenção, de um lado, o fato de não serem mencionadas nem a aparição da SS. Virgem nem a bula de João XXII «Sacratissimo uti culmine»; de outro lado, verifica-se que, independentemente desses tópicos, a Santa Sé aprecia a fidelidade ao escapulário do Carmo, mencionando especial proteção de Maria para os verdadeiros devotos do mesmo (o que certamente exclui o porte meramente mecânico de tal insígnia); o documento, porém, não fala de libertação do purgatório no primeiro sábado após a morte, preferindo a fórmula mais geral; «especial proteção». — Como quer que seja, a idéia de sábado no purgatório teria que ser entendida em sentido largo ou translato, visto que a sucessão de dias da semana só pode ser critério na terra, onde o tempo é medido pelo movimento dos corpos; no purgatório há apenas almas separadas de seus corpos.
 
As considerações e conclusões acima talvez causem surpresa em um ou outro dos nossos leitores. Foram contudo ditadas pela objetividade dos documentos e fatos. Não acarretam, de modo algum, detrimento para a piedade. Muito ao contrário; esta tanto mais forte e frutuosa é quanto mais alicerçada sobre a verdade e o «sentire cum Ecclesia», sobre as normas e declarações da Esposa de Cristo. A cada cristão fica a liberdade de se santificar dando fé às promessas anexas ao escapulário do Carmo. A finalidade destas linhas era apenas a de remover qualquer concepção teologicamente errônea a respeito da tradicional devoção.
 
Bibliografia
A. Michel, Scapulaire, em «Dictionnaire de Théologie Catholique* XIV 1, Paris 1939, 1254 9).
K. Bihilmeyer, Skapulier, em Lexikon für Theologie und Kirche IX 617.
N. Paulus, Geschichte des Ablasses im Mittelalter II. 1923.
Berlinger-Steinen, Les indulgences. Paris 1925.