O que eu disse acima a respeito
de nossa docilidade, em tudo, aos conselhos do Padre Clérissac, e da maneira
pela qual esses conselhos levaram Jacques a um preconceito favorável à “Action
Française”, que ele lamentaria tão vivamente depois, levanta um problema sobre
o qual mais tarde Jacques e eu temos pensado muitas vezes.
Houve da parte do nosso guia uma
inadvertência – e da nossa parte um erro – porquanto esse elemento de ordem
temporal nunca deveria ter sido apresentado por ele no exercício da sua direção
espiritual, nem aceito por nós sem esse exame.
Nessa inadvertência num homem de
rara retidão de espírito e de caráter se revelam sem dúvida esses inevitáveis “limites
do criado” que o Padre melancolicamente nos fazia notar mesmo na ação dos
melhores.
Se tomo a liberdade de formular
um julgamento que pode parecer presunçoso com relação a um sacerdote admirável,
para com o qual a nossa dívida é imensa, não o faço por prazer, e garanto que
não é sem me sentir confusa. Se só tratasse de mim, na pobreza dos meus
próprios limites, contentar-me-ia silenciosamente com o exame da minha
consciência; mas trata-se do que interessa à própria verdade num certo plano
prático, e aí nem a nossa pequenez nem a grandeza de um guia poderiam impedir a
verificação de um fato. Um preconceito que no Padre Clérissac era acidental à
essência da sua própria vida espiritual e de seus conselhos espirituais –
unidos à nossa confiança e à nossa inexperiência – teve consequências graves
para nós mesmos e para alguns dos que haviam seguido conosco o estímulo
recebido.
Desde então encontramos muitas
vezes erros análogos, em diversos sentidos, e observamos as suas lamentáveis
consequências. É, pois, de um modo muito geral que consignamos um certo risco
inerente à direção das almas e dele falamos aqui. Quaisquer que sejam as críticas
em que eu possa incorrer por isso, escrevo estas linhas sem nenhum receio, e de
acordo com o sentimento que tenho do meu dever presente. Em toda vida chega um
momento em que se torna natural não temer senão o Deus que se ama e de quem se
espera a luz e a salvação.
É claro que não ponho em dúvida
um só instante a utilidade geral da direção espiritual. Sentimos nós mesmos
quão necessários e benéficos foram para nós os guias espirituais que Deus nos
fez a graça de enviar e a nossa gratidão para com eles nunca terá fim. Sei
também o que Santa Teresa e outros santos ensinaram sobre esse assunto tão
importante. Se o próprio Padre Clérissac caçoava dos diretores que dão
conselhos às suas penitentes sobre a cor do seu chapéu, ou que pretendem levá-las
para o céu “numa poltrona”, estava contudo persuadido, com a tradição cristã,
de que as almas, sobretudo quando se encontram nos caminhos da oração, têm uma
grande necessidade dos conselhos de um homem prudente e experimentado, e não
poderiam, sem temeridade, fiar-se em si próprias. A palavra “paternidade
espiritual” seria talvez até mais apropriada aqui do que direção. A autoridade
moral de um pai, a educação que dá, são tão necessárias na ordem espiritual
quanto na natural. Como, sem ela, poderia a alma libertar-se das ilusões do
amor próprio, não se deixar enganar pelas inclinações que formam um todo com a
própria natureza individual, fugir às ciladas e às miragens do caminho, e
aprender pouco a pouco a formar o julgamento da sua consciência nessa “paz de
Deus que ultrapassa todo sentimento”? A alma cristã sabe o preço incomparável
da confiança absoluta e da simplicidade através das quais lhe vêm luzes que
nada no mundo poderia substituir.
As observações que quisera fazer
aqui são observações à margem dessas grandes verdades. Referem-se ao mesmo
tempo à prudência do diretor e à do dirigido. A experiência mostrou-nos até que
ponto a direção exige do diretor a mais pura discriminação das coisas que são
de Deus e das que são de César. Para que seja verdadeiramente espiritual, ela
exige que o próprio diretor tenha distinguido em si mesmo o que pertence à
ordem da graça, da fé, da teologia e da perfeição, do que pertence apenas à
herança humana; hábitos seculares, preconceitos de família, de raça ou de
casta, ou à ordem das inclinações individuais: preferências e gostos. Essa
discriminação angélica não existe certamente em toda a sua perfeição: mesmo os
santos, desapegados de tudo, vestem algum traje do seu tempo. Quase permanece
algo que perturba, por menos que seja, a transparência do olhar do diretor mais
escrupuloso, e associa às suas diretivas espirituais conselhos ou indicações de
uma outra ordem.
Acontece assim, em virtude de entrelaçamentos
psicológicos muito difíceis de evitar, que opiniões inteiramente humanas tomem
no espírito do que deve praticar a “arte das artes” quase o mesmo lugar que as
certezas que se referem à vida sobrenatural, e sejam apresentadas quase da
mesma forma que o exigido para a perfeição da alma.
O problema de que falo não
abrange apenas o papel do guia espiritual e o número restrito das pessoas que
recorrem a um diretor. Considera também, em condições diferentes e num outro
nível, o ministério do sacerdote com relação à massa dos fiéis. Como é difícil
aqui a situação do padre! Deve ensinar e guiar. E mesmo quando se trata de coisas
da terra, deve ensinar e guiar para o céu, e não para a terra. É lamentável que
os fiéis recebam às vezes, com o ensinamento religioso, dogmático e moral, conselhos
que transmitem aos princípios eternos, preconceitos e paixões de ordem
temporal, social e política. A Igreja como tal, porém, só trata das coisas
desse domínio nos seus mais elevados princípios – naqueles que dizem respeito à
ordem da moral, e cujas aplicações variam ao longo da história humana, e podem
ser sadias de acordo com modos analógicos diversos.
Quando a necessidade de uma tal
discriminação não é claramente reconhecida, a influência do padre, que deveria
ser puramente espiritual e moral, se estende às regiões da contingência
política e nos encontramos assim diante do caso em que personalidades
eclesiásticas se servem da boa-fé da sua autoridade para levar o povo fiel aos
caminhos efêmeros e decepcionantes da política de um país ou de um dia. E isso,
às vezes, como vimos na questão da “Action Française”, apesar das diretrizes e
ordens do próprio Papa, e sem temer arrastar a uma desobediência formal almas
religiosas que sem essa funesta confusão teriam reconhecido a legitimidade da
obediência. É assim que se dão os cismas – muito mais em geral por questões de
ordem temporal do que por questões de ordem religiosa e teologal.
Quanto ao dirigido, para voltar
às nossas primeiras considerações, é claro que o seu próprio bom-senso e sua
prudência, e, portanto, a sua responsabilidade, estão em jogo nesse caso.
Evitaria certamente erros grosseiros se soubesse claramente desde o começo que
por mais grosseira e pobre em virtudes que seja a sua consciência, é a ela no
entanto que cabe, afinal, depois de esclarecida por conselhos prudentes, fazer
sozinha diante de Deus o julgamento de que depende a moralidade do ato livre:
pois a direção espiritual tem por fim ensinar-nos a formar bem, e não a iludir o
julgamento de nossa consciência. Perdura, no entanto, o perigo acidental que
assinalei, tanto maior para o dirigido quanto, por outro lado, mais segura for
a direção que aceitou: a autoridade do pai espiritual admirado e venerado
transborda então, quase inevitavelmente, sobre todos os conselhos que dá a uma
alma que já tende naturalmente para a docilidade filial.
Essas almas fazem duras
aprendizagens. Felizes aquelas em que, à custa de experiências, de erros, de
sofrimentos e purificações divinas, se opera a discriminação que não encontraram
no espírito de seu diretor. O seu caminho espiritual se simplifica então na
medida em que tiver sido purificada, e ela tende a se conformar cada dia mais
ao simples caminho da caridade, do amor de Deus e do próximo – em que consistem
a Lei e os Profetas. Simplicidade verdadeiramente evangélica, a mais difícil
das simplicidades que se possa atingir, cujo nome é sinônimo de perfeição. São
essas almas que, pela virtude do Cristo, compensam as nossas faltas e nossos
erros no seio da Igreja.
(Raïssa Maritain, “As grandes
amizades: (memórias)”)
NOTA: Achei magníficas e sábias
essas belas considerações de Raïssa Maritain sobre a direção espiritual. Se as
tivermos presentes, evitaremos graves equívocos. Ser prudente, ponderado e
equilibrado é sempre necessário.