Em todos os vários jogos e
ofícios que andei aprendendo e ensinando ao longo da vida observei sempre a
mesma regra primeira, sem a qual o aprendiz aprende mal ou não aprende. Tomemos
como primeiro exemplo o jogo da esgrima: antes de aprender os gestos de prima,
segunda, terça e quarta, antes das lições do ataque ou da defesa, o espadachim
tem de aprender a fundamental posição do corpo bem plantado em cima das pernas
flexíveis e arqueadas, tem de dispor o busto, a cabeça, a cintura e o braço
esquerdo, tudo pronto para assumir a mais rica variedade possível de novas
posições para o ímpeto ou para a esquivança, para a defesa ou para o ataque.
Mas na base de todo esse calidoscópio de gestos vivos e prontos o bom
esgrimista há de possuir uma primeira e essencial posição do corpo. E logo se vê, pela especial beleza da especial
elegância de cada jogo, quem será esgrimista acima do comum. Observem no jogo
do bilhar (refiro-me ao verdadeiro e nobre bilhar francês), e logo verão quem
joga e quem não joga pelo simples jeito de pegar no taco e de acavalar os dedos
da mão espalmada sobre a lousa. Não há posição do corpo mais ridícula do que a
do principiante no bilhar ou na esgrima. Um professor de piano que conheci no
grupo d’O Pinguim, com certo exagero de espanhol costumava dizer que os homens
têm uma tendência natural de “hacer las cosas mal hechas”. As primeiras lições
de piano são silenciosas e mais esculturais do que musicais: são a busca do
corpo, o preparo da mão, o retoque do busto; as semifusas virão a tempo, quando
o corpo do pianista já estiver amansado. Tenho experiência de vários
aprendizados frustrados, e por isso posso gabar-me do oblíquo proveito de
tantos fracassos. Anos de má pintura e péssima escultura, dois ou três de um
invencível piano, esgrima, e até ano e meio de um violino que só serviu para me
inculcar uma ilimitada admiração pelos que conseguem fazer gemer tão absurdo
instrumento. Lembro-me das tumultuosas lições de violino de minha irmã ainda
hoje caçula de 73 anos com o professor Ronchini, italiano extremamente
irascível que se sentia ofendido, ferido em sua honra, quando a menina de sete
anos lá nos confins de minha saudade abraçava mal o instrumento e empunhava mal
o arco. Mais de uma vez, estando eu na varanda à espera da irmã, vi passar pela
janela o arco, como no I ato do Parsifal.
Outra lembrança que me inunda de
saudades é a da mão do Sr. Castanheira, meu padrasto: era grande, vigorosa e
aristocrática. Via-se nela, no simples jeito de pegar uma ferramenta, e de
dominar a matéria trabalhada, toda uma condensação de habilidades disponíveis.
Há mãos assim que nos dão a impressão de serem capazes de pensar antes de
trabalhar.
Escreveria mais extensamente
sobre este transcendente assunto, a
posição do corpo, e teria gosto de desenvolvê-lo em outros níveis se o
leitor prometesse não se enfadar. No que sairia perdendo porque estou
convencido de estar hoje trazendo a mensagem mais proveitosa do que tantas
outras que debalde tentei transmitir.
Para cativar o leitor exageremos:
tudo na vida depende da posição do corpo. O Evandro Pequeno ou o Ovalle, ambos
inesquecíveis personagens d’O Pinguim, um deles, qual?, uma tarde
perguntou-nos: “Vocês já repararam que a gente, quando vai pedir dinheiro, fica
torto?” E a mímica que acompanhava a tese demonstrava-a cabalmente. Donde
concluímos, parodiando o Eclesiastes, que há uma posição para pedir e uma
posição para dar, outra posição para tocar piano e outra para a harpa, uma para
produzir temor e outra para infundir piedade. Tudo da vida, em suma, é posição do
corpo. Sendo verdade, como dizia o Teruz, que todos temos tendência natural de
fazer as coisas malfeitas, concluiremos que seria mais proveitoso desentortar
os corpos mal crescidos do que lhes estimular, como é moda, uma imprudentíssima
criatividade.
Ou então concluiremos, à vista do
espetáculo que se nos oferece, que houve um abalo cósmico profundo e imenso e
que é o próprio mundo que anda torto em sua posição básica, e grotescos serão
os frutos desse aleijão universal.
Sim, é nas coisas básicas e
primeiras, e não nas últimas e difíceis, que são hoje cometidos os erros mais
ridículos e mais funestos. Como também são as matérias mais gratuitas e
abundantes que começam a faltar. Não me refiro ao petróleo do Oriente Médio;
refiro-me antes ao AR. Vivemos um arquejante fim de civilização. Temos falta de
ar. Ouvi há dias uma conferência sobre a poluição do ar, sobre a poluição da
água e sobre a poluição sonora. De todos esses disparates eu me escandalizo
muito mais com a ONU do que com as guerras, porque as situações internacionais
que levam às guerras ainda guardam coerência com a lei natural que compele o
homem à defesa de seus bens, pelos quais sempre houve uma normal disposição de
lutar até o sangue. O que me parece muito afastado do normal é o himalaia de
imposturas que foram inventadas com o pretexto de evitar os horrores das guerras,
e que produziram esse horror de paz em que se polui o ar, a água, e sobretudo
se poluem as almas. E diante da monstruosa apologia da monstruosidade, diante
da insensibilidade universal produzida nos lugares instituídos para apuro do
homem, diante de tal amontoado de coisas malfeitas, sou forçado a concluir que
o mundo inteiro deu uma reviravolta, um mau jeito do corpo, e ficou torto.
Teremos de começar pelo
princípio. E se não insistirmos na ortopedia mundial e na doutrina que exige
previamente a posição certa para o corpo, receio muito a grande explosão que
será produzida pela massa pavorosa de asneiras concentradas. Ouvi dizer, entres
outras hipóteses, que as estrelas novae surgem
por condensação da poeira espacial. A hipótese que transforma a fuligem em
estrela tem sua beleza. Receio que nosso mundo, na direção que tomou,
conseguirá o prodígio maior de transformar em alguma Aldebarã o pó e o
cacarejar das academias e dos institutos de Justiça e Paz.
Empreendamos, pois, a nossa
cruzada pelas coisas bem-feitas, a começar pelo reaprendizado da posição do
corpo, se na verdade quisermos prolongar um pouco a lenda do homem neste nobre
planeta que viu sua casca vibrar com tantos golpes de heroísmo e tantos passos
da santidade. Se não, se já estão fartos, é só deixar tudo correr como lá vai e
como se lê nas folhas.
(Gustavo Corção, “Conversa em sol
menor: memórias recolhidas”)
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