Um dia encontrei-me num bar com uma conhecida, uma espécie de colega ou semi-amiga, num aniversário de um amigo comum, e ela lançou-me a seguinte pergunta, bastante incômoda e dura, com solapada ingenuidade:
— Olá, Paul! Como andam as coisas? Você está feliz?
Imediatamente pensei: “‘Feliz’?! Que pergunta é essa? Que falta de pudor a dessa infeliz? Por que se interessa pela minha nudez, pela nudez da minha alma, pelos mornos recônditos do meu espírito? Quer mesmo que eu me dispa? Que vai fazer ela com tal revelação? Acredita-se ela merecedora desse raio-x? Por que não me perguntou ela pura e simplesmente se estou bem, se estou alegre, coisas mais vagas, mais alheias, mais rasteiras? Quantos tratados os filósofos não escreveram sobre o que é a felicidade? Saberei eu o que é a felicidade para dizer se estou feliz? Não tenho a menor ideia da resposta.” Parecem muitos pensamentos, demasiadas perguntas para mísero meio segundo, contudo creio que consegui fazê-las. Mas não foi só.
Nesse mesmo meio segundo ou segundo e meio, vasculhei ou tentei vasculhar cada recanto, cada dobra da minha alma para ver se estava feliz. Pareceu-me que em alguns cantos, sim, em outros, não, em algumas galerias, mais ou menos. Mas o pior: tive a impressão cruel de que a felicidade é infinita e não se pode alcançar inteiramente. É uma meta inalcançável, a que sempre se acrescenta alguma coisa. Uma vez atingida, ela se aumenta, se multiplica, se desdobra, cria novas exigências. Sempre lhe falta algum pedaço.
É incrível o que eu conseguir fazer ou pensar agora já em dois segundos. Respondi qualquer coisa, qualquer estupidez ou banalidade, nem me lembro o quê. No futuro iria conhecer um blasfemador, um profanador da verdade, um herege, um garçom de restaurante famoso que me perguntaria após a refeição se eu estava feliz. Era uma pergunta sacrílega. Um uso indevido de palavra sagrada. Cheguei a dizer-lhe uma vez: “Não exagere! Não empregue a ‘felicidade’ para coisa tão pequena e instantânea, muito menos para supervalorizar o seu ofício...” Na verdade, não disse a parte final. Mas tive vontade.
Minha amiga conseguiu estragar ou aprofundar as trevas da minha noite, tirar o sabor do meu chope e absorver inteiramente meus pensamentos em volta da palavra ‘felicidade’. Não se faz assim covardemente uma pergunta filosófica na porta de um boteco!
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