quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

AS DUAS POBREZAS E AS DUAS FORÇAS

Gustavo Corção Braga

"Sim, meu padrasto. Nesse tempo minha mãe se casara de novo com um personagem fabuloso que os filhos haviam descoberto nas matas do Trapicheiro. Era uma espécie de guarda-florestal que vivia numa caverna e usava barbas terríveis, atrás de cuja sombra brilhavam olhos de mel e escondia-se o melhor coração das redondezas. Para nós ele era uma espécie de meio-termo de entre o Capitão Nemo e Miguel Strogoff. E tanto insistimos que mamãe quis conhecer o prodígio pelo qual seus filhos estavam apaixonados, e apaixonou-se por ele também. Casaram-se com simplicidade, casando as duas pobrezas, mas também as duas forças." 

Gustavo Corção Braga nasceu em 17 de dezembro de 1896, no Rocha, Rio de Janeiro. Nas proximidades do seu aniversário natalício, com esse belo trecho, essa bela citação da crônica "Dia das Mães", que pode ser encontrada no livro "Conversa em sol menor", gostaria de pedir ao leitor as suas orações pela alma desse nosso heroi da fé e exímio escritor, polemista e apologeta católico, como também, em sinal de reconhecimento pelo bem que ele nos fez e ao Brasil, com seus escritos, exemplos e ensinamentos, pelas almas de seus pais, Francisco Braga e Gracietta Corção, de seu padrasto, seu Castanheira, de sua primeira esposa, Diva Corção, por sua segunda esposa, Hebe Corção, por seus filhos e netos.



quinta-feira, 16 de novembro de 2023

A VERDADEIRA HISTÓRIA DA MULA SEM CABEÇA


Confundido com o burro, o jegue e o jumento, o asno é tido como um animal dado a asneiras. Sei, porém, de um asno que, rebelando-se contra seu passado de jumentices, adquiriu saber e ciência, bem como o respeito de toda a bicharada.

Erasmo era o nome do asno.

Eis a iluminação, o pensamento libertador do pobre quadrúpede: "Renego a tradição de meus ancestrais! Não vou carregar esse fardo de burrices! Aliás, sou asno, e não burro. Burro é o burro!"

Até então, ao longo dos séculos, aberta a sucessão testamentária de um asno, percebia-se que o monte compunha-se apenas de ignorância e curteza de espírito.

Erasmo pastou muito até chegar à universidade. Mas, é preciso dizer que, não obstante sua condição animalesca, era um aluno privilegiado. Em primeiro lugar, porque ele era sua própria condução: ia trotando feliz para o campus. Nunca tivera de enfrentar o Circular 05. Em segundo lugar, porque havia bastante capim no campus e, assim, economizava também o dinheiro do bandejão. O nosso asno era, pois, econômico e chamava a atenção de todos os seus colegas universitários, que acabaram acostumando-se com o seu cheiro.

Aliás, seus colegas prognosticavam: "Esse burro vai longe!" "Esse jumento ainda vai ser juiz!"

Nem gostaria de comentar as agruras por que passou esse primo de jegue por ocasião de sua colação de grau! Todo o reino animal alvoroçara-se, pretendendo ser convidado para a solenidade. Baldada a agitação... A onipotente Comissão de Formatura estabelecera que apenas os pais e irmãos de Erasmo poderiam comparecer à solenidade.

Colado o grau, Erasmo foi coroado o rei da floresta. Sua erudição tornou-se proverbial, ficando internacionalmente conhecida. Era o Salomão da caatinga, do cerrado e da estepe! Todos os animais comentam o progresso da selva sob o governo do douto imperador. O leão foi enxotado com o rabo entre as patas, como um intransigente ignorante.

***

Mulata era uma mula. Uma mula espetacular, diria até, estupefaciente. Foi o único outro caso de animal estudando na universidade. Como Erasmo, ao contrário de todos os outros animais, por algum estranho prodígio, também foi dotada de alma racional. Apaixonou-se por Erasmo durante os estudos, foram colegas. Derrubava livros no chão de propósito de forma dissimulada para que o nosso distraído herói, de passagem, gentilmente os pegasse.

Mas, meus amigos, nem tudo é alegre nessa vida e, particularmente, nessa história. Embora fosse a mula mais bonita do sistema planetário, mais bonita que a lua e as estrelas, superando até suas colegas que andavam sobre duas patas, digo, pernas, Mulata não era correspondida. Desolada, começou a embriagar-se devido ao insucesso do seu amor platônico. Toda a floresta começou a dizer a seu respeito: "Está um caco! Foi-lhe embora o juízo, perdeu a cabeça...".

E essa, meus amigos, acreditem ou não - já adivinho o espanto do leitor! -, é a verdadeira história, a incontestável origem, da mula sem cabeça.



quinta-feira, 26 de outubro de 2023

HALLOWEEN

 

O próprio bom senso deveria levar as pessoas a abominar o Halloween, uma festa em que se exalta o feio, o mórbido, o macabro, a morte, o ocultismo e os crimes. Que há de belo no Halloween? Que valor humano é enaltecido ou estimulado? Qual é a mensagem positiva que ele passa? Nenhuma. Pelo contrário, a mensagem é claramente sombria e negativa.

É de lamentar-se o espírito de manada que parece governar boa parte dos brasileiros, dos pais de família, que se deliciam com uma festa importada sem menor aviso, festa aliás que nada tem a ver com nossa cultura e nossos valores civilizacionais cristãos. Até pouco tempo atrás, o Halloween era apenas um modismo tolo de escolinhas de inglês. Depois, propagou-se com a velocidade do som e invadiu nossas cidades e nossos condomínios. Onde está nosso bom senso? Onde está nossa sensibilidade espiritual, nossa inclinação para o bem e aversão para o mau?

Como não basta o bom senso, que deveria ser suficiente, consultem-se os especialistas, como o exorcista português Antônio Duarte Lara, que em diversos vídeos do Youtube menciona o entusiasmo com que os satanistas celebram essa data, que inaugura o ano novo satânico, às três horas da manhã (por inversão da hora da misericórdia, do triunfo de Cristo na Cruz), inclusive com sacrifícios humanos de fetos concebidos sete meses antes.

Não, meus amigos. Isso não é brincadeira. Não podemos participar disso.


 

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA, PADROEIRO DO BRASIL



São Pedro de Alcântara



 "São Pedro de Alcântara, Padroeiro do Brasil


Poucos brasileiros se lembrarão de seu grande e poderoso patrono, que acompanha todo o desenvolvimento do Brasil desde os primeiros anos da independência. A festa litúrgica, no dia 19 de outubro, festejada com grandes pompas pela Corte Imperial, e ano por ano rememorada pela Liturgia, não se popularizou. Esperaríamos que o glorioso Patrono tivesse, ao menos, a fama que entre nós goza seu confrade Santo Antônio. Mas não. Talvez pelos traços rígidos de seu rosto magro. Talvez pela grande cruz que o acompanha em todas as gravuras, e com razão, já que a cruz foi a síntese de toda a sua piedade. Mas não é o Brasil a Terra de Santa Cruz?

Cremos que o grande Patrono do Brasil se apresenta aos brasileiros de hoje cheio de lições e exemplos. No surto prodigioso em que nos encontramos, e no momento histórico tão indeciso e tão sério que vivemos, São Pedro de Alcântara, rico e pobre ao mesmo tempo, sábio e simples, camponês e universitário a uma só vez, reformador de costumes e guia numa época turbulenta e confusa, homem de árdua penitência pessoal e todo compreensão e amor para com o próximo, é o condutor por excelência do Brasil de nossos dias."

(Stéphane Joseph Piat, "São Pedro de Alcântara: patrono do Brasil")



A partir do ano que vem, com o novo missal, sua memória será obrigatória no Brasil.



sexta-feira, 10 de março de 2023

A PROVIDÊNCIA E A CARIDADE PARA COM O PRÓXIMO

 CAPÍTULO IV

A Providência e a Caridade para com o próximo


Como vimos no capítulo precedente, um dos principais meios pelos quais se exerce a Providência é a caridade para com o próximo, que deve unir todos os homens para que se ajudem mutuamente a caminhar para o mesmo fim: a vida eterna.


Este é sempre um tema de grande interesse, e é importante voltar sempre a ele, sobretudo em nossa época em que a caridade para com o próximo é negada pelo individualismo sob todas as suas formas, e completamente falsificada pelo humanitarismo dos comunistas e dos internacionalistas.


O individualismo não se eleva, por assim dizer, acima da busca do útil e do agradável para o indivíduo, ou no máximo para o grupo relativamente restrito ao qual pertence o indivíduo. Daí a aspereza da luta, às vezes entre os membros de uma mesma família, mas sobretudo entre as classes e os povos. Daí o ciúme, a inveja, a discórdia, o ódio, as divisões mais profundas. É o não reconhecimento do bem comum em graus diversos, e a afirmação quase exclusiva dos direitos individuais ou particulares.


Em oposição a isso, o humanitarismo dos comunistas e dos internacionalistas afirma a tal ponto os direitos da humanidade em geral, mais ou menos identificada de um modo panteísta com Deus, que os direitos dos indivíduos, das famílias, dos povos, desaparecem, e, sob o pretexto da unidade, da harmonia e da paz, provoca-se a pior das confusões e a maior desordem, como a que se vê na Rússia desde a revolução. Querer que, em um organismo, todas as partes tenham a perfeição da cabeça, ou suprimir a cabeça por ser mais perfeita que os membros, é destruir o organismo vivo inteiro.


É totalmente evidente que a verdade se encontra entre esses dois erros extremos e acima deles. A igual distância do individualismo e do comunismo, ela afirma os direitos dos indivíduos, das famílias e dos povos, e também as exigências do bem comum, superior a qualquer bem particular. Assim, uma justa concepção das coisas vela pelo bem individual por meio da justiça comutativa, que regula as trocas entre particulares, da justiça distributiva ou distribuição proporcional dos bens de utilidade comum e dos encargos, e vela também pelo bem comum por meio da justiça legal, segundo a qual devem ser elaboradas leis jutas, e pela equidade, que está atenta ao espírito da lei nas circunstâncias excepcionais em que a letra da lei não pode ser aplicada.


Esses quatro tipos de justiça, admiravelmente distinguidos por Aristóteles, e muito bem explicados por São Tomás em seu tratado de Justitia*, bastam em certo sentido para manter o justo meio-termo acima dos erros contrários do individualismo e do comunismo humanitário. A doutrina de São Tomás sobre este ponto não é ainda suficientemente conhecida; ela poderia ser o tema de trabalhos muito interessantes e muito úteis.


Mas estes quatro tipos de justiça: justiça comutativa, justiça distributiva, justiça legal ou social e equidade, por mais perfeitas que possam tornar-se, e mesmo iluminadas pela fé cristã, não poderiam atingir a perfeição da caridade em relação a Deus e ao próximo, que tem um objeto formal incomparavelmente superior.


Recordemos qual é o objeto primário da caridade e qual é o o seu objeto secundário. Veremos em seguida como praticar essa caridade em relação ao próximo, e como se realiza, por meio dela, o plano da Providência.



* II - II, q. 58, 61,120.



(Reginald Garrigou-Lagrange, no livro "A Providência e a confiança em Deus", Cultor de Livros, págs. 345 a 347).


terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

CHEGOU O NATAL!


Caro leitor, estamos às portas do Natal. Talvez o seu caminho, o meu caminho, percorrido até aqui não tenha sido fácil. Talvez tenha ocorrido a molesta sensação do desânimo, o impertinente, o inconveniente cansaço da alma. Será que não nos perdemos e muitas vezes andamos em círculos, mais ou menos regulares, de maior ou menor diâmetro, como o Padre Donissan num trecho de "Sob o sol de Satã"? Quem sabe se em alguns momentos não terá se insinuado, como um demônio mudo, a labiríntica sensação de desespero? Ou quem sabe uma acabrunhante sensação de impotência absoluta?
 
É possível que os dias desse ano tenham sido iguais em demasia, que a sua monotonia tenha sido superior à aceitável. Pode ser que as semanas desse moribundo que grita e agoniza tenham tido três ou quatro segundas-feiras, raramente domingos. Parece verdade que os seus erros, que os meus erros, tenham sido demais, tenham se multiplicado e propagado com a velocidade do som. Pode ser que tenhamos arrastado atrás de nós o nosso próprio cadáver, que tenhamos sido devorados pelo tédio.

O esgotamento do corpo é de simples remédio, mas que fazer com o envelhecimento da alma, com as rugas nas dobras do espírito, com as artrites e artroses do eu que nos habita? É relativamente fácil recompor as forças do corpo, mas como refazer, devolver, insuflar forças à alma esgotada?

Uma espécie parecida de esgotamento, de cansaço, está magistralmente descrita n'"O Diário de um Pároco de Aldeia":

"Minha paróquia é uma paróquia como as outras. Todas as paróquias se parecem. As paróquias de hoje, naturalmente. [...]

Minha paróquia é devorada pelo tédio, eis a palavra. Como tantas outras paróquias! O tédio as devora sob nossa vista e nada podemos fazer. Um dia, talvez, o contágio tomará conta de nós, descobriremos em nós esse câncer. Pode-se viver muito tempo com isso.

[...]

Dizia a mim mesmo que o mundo é devorado pelo tédio. Naturalmente, é preciso refletir um pouco para dar-se conta disso; não é fato que se apreenda assim, de relance. É uma espécie de pó. A gente vai e volta sem o ver, respira-o, come-o, bebe-o; é tão tênue, tão fino, que nem ao menos range sob os dentes. Mas se a gente para um segundo, ei-lo que cobre nosso rosto, nossa mão. Temos de nos sacudir, sem cessar, para libertar-nos dessa chuva de cinza. Daí por que o mundo tanto se agita.

Dir-se-á talvez que, há muito, o mundo se familiarizou com o tédio, que o tédio é a verdadeira condição do homem. É possível que a semente espalhada por toda a parte germinasse, aqui e ali, em terreno favorável. Pergunto, porém, se os homens conheceram algum dia esse contágio do tédio, essa lepra! Um desespero malogrado, uma forma torpe do desespero que é, sem dúvida, como que a fermentação de um cristianismo desfigurado."

Interessante a observação do autor. A agitação do nosso tempo teria como causa o nosso tédio, o nosso desespero malogrado, uma forma torpe do desespero, a fermentação de um cristianismo desfigurado.

Esse trecho primoroso d'"O Diário de um Pároco de Aldeia" soa para mim da mesma forma que "No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade. Os dois textos tratam do cansaço da alma:

"No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra."

Não pense o leitor que eu pretenda oferecer soluções fáceis para problemas difíceis. A rigor, nem sequer sei se sou capaz de oferecer uma solução. Contudo, o problema não parece ser a paróquia. Nem o caminho. Não parece ser a repetição em si mesma, a sucessão de atos que se repetem e não parecem atingir fim algum. O problema real é não fazer a exumação, a radiografia do ato, não esquadrinhá-lo, não compreendê-lo em sua inteireza e interioridade.

Enxergar cada momento como uma oportunidade única e irrepetível, ainda que eventualmente assemelhada a outras, como um dom a ser explorado, como uma página a ser escrita, como uma poesia a ser feita, como um jarro vazio a ser preenchido com o vinho novo da alegria. Não são os atos que cansam. É a sua falta de razão. Gosto de pensar em que, no princípio, era o Logos. Logos pode ser traduzido, dizem os exegetas, como Palavra, como Verbo, mas também como Razão, como Sentido. Gosto de pensar em que no princípio, era o Sentido, estava o Sentido, estava a Razão. Estava Aquele que é e dá Sentido e Razão a todas as coisas. Esta mesma Razão, este mesmo Sentido, quer descer aos nossos mínimos atos, como desceu em nossa singela humanidade no tão pouco razoável, no insólito e absurdo estábulo de Belém.

Antes de Jesus Cristo muitas crianças nasceram. Houve uma estranha e monótona repetição de nascimentos. Todos os nascimentos anteriores anunciavam, de alguma forma gritavam aos quatro cantos, profetizavam, a sua vinda, como uma espécie de introdução, de preparação, de prelúdio.

Lá do céu Deus Pai deve ter visto o nosso cansaço, o nosso desânimo, o nosso tédio infinito. Esse câncer, esse pó que nós comíamos sem ver. Deve ter visto a fermentação da antiga aliança desfigurada. E quando a humanidade já não aguentava mais, arrastava-se no meio do caminho, fez seu Filho pousar em nossa humanidade e enchê-la de razão e de sentido. Não poderia ter sido de forma mais bela. Mais doce, mais calma.

É possível que nosso Pai diga ao sol todos os dias: "Vamos de novo!", como pensou Chesterton, pois nosso Pai é mais jovem do que nós, que envelhecemos.

Que o Verbo, depois de pousar em nós, em nossa humanidade, pouse em nossos atos e os encha de sentido. Que nossos atos sejam enxertados na videira. Que Ele derrame o vinho novo, aquele de melhor sabor, no pequeno jarro de cada uma de nossas ações, até nas mais banais e enfadonhas. Que Deus Pai nos diga, diga aos nossos atos, todos os dias, como diz ao sol: "Vamos de novo, ação por ação, encher de sentido o mundo".


segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

O DEVER DO MOMENTO E A GRAÇA ATUAL

Prezado leitor, o ensinamento católico faz uma distinção entre duas espécies de graças, a graça habitual e a graça atual.

A graça habitual é o mesmo que graça santificante, estado de graça, participação na vida divina, participação na vida íntima da Santíssima Trindade. Embora não o sintamos claramente e não se realize perfeitamente nessa vida, consiste em ver a Deus como Ele mesmo se vê e amá-Lo como Ele mesmo se ama. Pela graça santificante, Deus em nós se vê e se ama, e leva-nos a participar disso, das relações íntimas da Santíssima Trindade. É a graça mais importante para nossas vidas, pois é a vida eterna começada, é a comunhão com Deus, é a amizade com Deus, é a participação na vida íntima de Deus, que se realizará com perfeição no céu. Sem ela, sem a graça habitual, sem a graça santificante, somos inimigos de Deus, ainda que examinando-nos a nós mesmos nos pareça que não. Mesmo que os nossos sentimentos traiam-nos, afirmando que somos amigos de Deus, se estamos em pecado mortal, se não estamos na graça santificante, somos inimigos de Deus. E, se morrermos nesse estado - Deus nos livre de tão grande mal, ainda que seja no último momento -, seremos condenados ao inferno.

A graça atual é a que Deus concede a cada momento para o cumprimento do dever. Se somos fiéis a ela, a nossa vida ativa se eleva pouco a pouco, participando da vida contemplativa. Correspondendo às graças atuais, nossa vida ativa tornar-se cada vez mais penetrada pela vida contemplativa, pela presença de Deus. Recebemos a graça atual mesmo se estamos em pecado mortal: é justamente uma graça atual, uma força e inspiração de Deus, que nos leva a rezar e nos leva a nos confessar para nos reconciliarmos com Ele. A graça atual é uma luz e uma força para o cumprimento do dever de cada momento. Se estamos na graça santificante, a graça atual nos leva e nos ajuda a crescer naquela, a progredir na amizade com Deus. Se estamos em pecado mortal, a graça atual é que nos dá força, nos impele, nos ajuda a aproximarmo-nos de Deus novamente. É a graça atual que converte o pecador, pois, quando ele estava no pecado, não possuía a graça santificante.

Pois bem. Gostaria de recomendar a leitura de um livro magnífico, do célebre teólogo dominicano Reginald Garrigou-Lagrange. Estou finalizando a leitura de "A Providência e a confiança em Deus", lançamento da editora Cultor de Livros, que se dedica a uma obra ou missão importantíssima: traduzir para o português grandes obras da literatura cristã não encontradas em nossa língua. Foi o caso d'"As três idades da vida interior", do mesmo escritor, da biografia de São Pedro de Alcântara, patrono do Brasil, e de tantos outros livros editados pela Cultor.

Garrigou-Lagrange levou-me a compreender melhor a imensa graça do cumprimento do dever de cada momento, de cada instante. Recordou-me inclusive algo da logoterapia, que afirma que as nossas escolhas de cada momento na vida, podem ter sentido ou não. Importa fazer escolhas com sentido. É bom, é necessário, é indispensável, em cada instante, em cada momento, em cada atividade, penosa ou prazerosa, fazer a vontade de Deus, para o que Ele nos concede, também a cada momento, a cada instante, a graça atual, a força, o auxílio necessário para cumpri-lo. E, correspondendo a cada graça habitual, mais graças nos são concedidas, e vamos crescendo em santidade.

Ensina Garrigou-Lagrange, com sua habitual simplicidade e clareza:

"Qual a conclusão prática? É que, fazendo o possível para cumprir nossos deveres cotidianos, devemos abandonar-nos quanto ao restante à divina Providência, com a mais filial confiança. E se procurarmos realmente ser fiéis nas pequenas coisas, na prática da humildade, da mansidão, da paciência, nas coisas do dia a dia, o Senhor nos dará a graça de ser fiéis nas coisas grandes e difíceis, caso nos peça para enfrentá-las; e então, nas circunstâncias extremas, ele concederá graças extremas àqueles que o buscam.

[...]

Já vimos por que devemos confiar-nos e abandonar-nos à Providência: devido à sua sabedoria e à sua bondade; e em que devemos confiar-nos a ela: em todas as coisas, quanto à alma e ao corpo, com a condição de cumprir os nossos deveres cotidianos, e lembrando que, se formos fiéis nas pequenas coisas, obteremos a graça de o ser também nas grandes.

[...]


O dever do momento presente tal como o compreenderam os santos, e a luz que ele contém


O dever de cada instante, sob aparências muitas vezes modestas, contém a expressão da vontade de Deus para nós, para nossa vida individual. A Virgem Maria viveu, assim, na união divina cumprindo no dia a dia a vontade de Deus no dever cotidiano de sua vida muito simples, muito comum exteriormente, como a de todas as pessoas de sua condição. Assim viveram todos os santos, fazendo a vontade de Deus tal como se manifestava de hora em hora, sem se deixar perturbar pelas contrariedades imprevistas. Seu segredo estava em tornar-se, a cada momento, aquilo que a ação divina queria fazer deles. Nessa ação, eles viram tudo o que tinham a fazer e a sofrer, todos os seus deveres e todas as suas cruzes. Estavam convencidos de que o acontecimento atual é um sinal de uma vontade ou de uma permissão de Deus para o bem daqueles que o buscam. [...] Os santos veem, assim, na sequência dos acontecimentos, como que um ensinamento providencial, e acreditam que, acima da sucessão dos fatos exteriores de nossa vida, há como que uma série paralela de graças atuais, que nos são incessantemente oferecidas para fazer-nos tirar, desses acontecimentos agradáveis ou desagradáveis, o melhor proveito espiritual.

[...]

Os santos, em circunstâncias semelhantes e mesmo em outras muito piores, dizem: Fazer a cada momento a vontade de Deus é, no fundo, a única coisa necessária. O Senhor nunca ordena o impossível, mas há um dever que, a cada momento, ele torna realmente possível para cada um de nós, e para cujo cumprimento solicita o nosso amor e nossa generosidade.

[...]

O dever que precisamos cumprir a cada hora é, como dizíamos, um sinal da vontade de Deus para nós em particular, hic et nunc [aqui e agora], e contém assim uma luz prática muito santificadora, que é a do Evangelho aplicado às diversas circunstâncias de nossa vida; são realmente as lições de coisas de Deus.

Se, a exemplo dos santos, soubéssemos considerar assim cada momento, veríamos que cada um deles contém não somente um dever a cumprir, mas também uma graça para que sejamos fiéis a esse dever.

[...]

'O momento presente é sempre cheio de tesouros infinitos; seu conteúdo ultrapassa a vossa capacidade. A fé é a medida: nele encontrareis tanto quanto credes. Também o amor é a medida: quanto mais o vosso coração ama, mais ele deseja, e quanto mais deseja, mais encontra. A vontade de Deus se apresenta, a cada instante, com um mar imenso que o vosso coração não pode abarcar. Ele recebe dela segundo a medida em que é expandido pela fé, pela confiança e pelo amor; todo o restante da criação não pode preencher o vosso coração, que tem mais capacidade do que tudo aquilo que não é Deus. As montanhas que impressionam os olhos não passam de átomos no coração. A divina vontade é um abismo, cuja abertura é o momento presente: mergulhai nesse abismo, e o encontrareis sempre maior do que os vossos desejos.'"

Insisto, portanto, na recomendação da leitura do livro e em especial nessa abertura ao infinito, que é o cumprimento do dever do momento do presente, pequeno ou grande, agradável ou difícil, na fidelidade à graça atual oferecida. Concluo com o grande autor espiritual:

"Sejamos assim santamente atentos à graça atual que, de minuto a minuto, nos é oferecida para o cumprimento do dever presente. Veremos, assim, cada vez melhor, o que deve ser a nossa fidelidade nas pequenas coisas como nas grandes."




domingo, 29 de janeiro de 2023

O APÓSTOLO DOS TEMPOS MODERNOS


Santo Tomás de Aquino


 "Santo Tomás o apóstolo dos tempos modernos.


8. Com Leão XIII prossegue a áspera luta 'contra os erros modernos'. Em 1878 publica 'Quod apostolici muneris', contra as ilusões do socialismo e do comunismo, continuando as advertências de seus predecessores, e chegando a dizer: 'Tenham além disso o maior cuidado para evitar que os filhos da Igreja Católica deem seus nomes ou prestem algum favor a essa detestável seita (socialista)'.


Em 1879, a encíclica 'Aeterni Patris', recomenda veementemente a fidelidade ao estudo da obra de Santo Tomás de Aquino.


LEÃO XIII: 'Múltiplos são os motivos que provocam em nós essa ardente vontade. Em primeiro lugar, pelo fato de estar a fé cristã, em nossa época, diariamente exposta às maquinações e às astúcias duma sabedoria enganadora, torna-se mister proporcionar aos jovens, sobretudo àqueles em que a Igreja põe suas melhores esperanças, o alimento forte e substancial da boa doutrina, para que, cheios de vigor, abundantemente equipados, se acostumem cedo a defender a causa da religião com força e sabedoria: 'sempre prontos a responder a quem pedir a razão dessa esperança que carregamos (I Pet III, 15), e a exortar na sã doutrina refutando os contraditores'.' (Tit. I, 9.)


Não é difícil imaginar o estupor dos 'esclarecidos' diante desse documento que recomendava aos moços a doutrina de um doutor da Igreja de 700 anos atrás. Anos mais tarde, durante o admirável renascimento do tomismo em França, Jacques Maritain podia dizer com firmeza e tranquilidade que Santo Tomás era o apóstolo dos tempos modernos, mas o mérito da primeira exumação cabe sem dúvida a Leão XIII.


No ano seguinte [Leão XIII] publica a encíclica 'Diuturnum', sobre a origem do poder, e contra a funesta doutrina da soberania absoluta do povo, que constitui a mais brutal forma de laicização de nossos tempos. No ano seguinte, na carta 'Cum Multa', dirigida aos espanhóis, retoma o problema das relações entre o religioso e o civil, que os liberais pretendem cortar deixando a religião relegada à esfera privada da consciência de cada um. Em 1884, escreve ‘Humanus Genus’ contra a maçonaria e outras sociedades hostis à Igreja, e combatendo o ‘naturalismo’, doutrina que pretende absorver, na natureza e na razão humana, soberanas para todos os problemas humanos, a ordem da Revelação e da Graça. Nessa encíclica, contra os liberais, volta a firmar a doutrina das relações da Igreja com o Estado. No ano seguinte, 1885, aparece a ‘Immortale Dei’, batendo na mesma tecla, e combatendo a nefasta ideia de ‘soberania do povo’, a indiferença religiosa, os falsos conceitos de liberdade, e de um modo geral combatendo o laicismo que pretende desligar toda a vida civil de qualquer referência a Deus e a sua Igreja.


No mesmo ano a grande encíclica ‘Libertas’, sobre a liberdade humana, e sobre os erros do tempo cometidos em nome da liberdade. Mostra que a Igreja é defensora da liberdade e da autoridade, sem as quais não pode o homem viver dignamente. Ataca frontalmente o liberalismo: o radical, que rechaça o senhorio de Deus sobre o homem e sobre a sociedade, relativiza a divisão do bem e mal, deixando a cada um o direito de demarcar, entre o honesto e o torpe, segundo seus gostos ou costumes do seu meio; o mitigado, que não chega a tão ‘aterradoras opiniões’ mas tende para elas, e mesmo o moderado, que cedo ou tarde abrirá o campo do erro inicial. Ataca em seguida a falsa liberdade de religião, que é uma maneira de dizer que todas são falsas, a falsa liberdade de falar e de escrever, a falsa liberdade de ensinar, contrapondo a esses conceitos os da verdadeira liberdade. Cinco anos mais tarde, 1890, temos ‘Sapientiae Christianae’ voltando ao erro do naturalismo e do laicismo, e lembrando os deveres e obrigações dos cristãos.


Finalmente, em 15 de maio de 1891, publica Leão XIII a primeira encíclica sobre a chamada questão social: 'Rerum Novarum', onde começa por mostrar que o 'socialismo' traz uma falsa solução para o grande problema do estado e condição dos operários. Mostra em 1891 o que só hoje se tornou patente: 'o socialismo piora a condição dos operários', ou traz, como disse Marcel de Corte, um amor pelo homem abstrato que esconde o mais cruel ódio pelo homem de carne e osso que a história já registrou. Leão XIII defende a doutrina firmada da legitimidade e da necessidade da propriedade privada, e desdobra um ensinamento para a integração do operário na empresa. Começa a Ação Social da Igreja, continuada mais tarde, e acompanhada e vigiada de perto pelas grandes condenações de Pio X, Pio XI, Pio XII, João XXIII e Paulo VI.”


(Gustavo Corção, "Dois amores - duas cidades")