Prezado leitor, o ensinamento católico faz uma distinção entre duas espécies de graças, a graça habitual e a graça atual.
A graça habitual é o mesmo que graça santificante, estado de graça, participação na vida divina, participação na vida íntima da Santíssima Trindade. Embora não o sintamos claramente e não se realize perfeitamente nessa vida, consiste em ver a Deus como Ele mesmo se vê e amá-Lo como Ele mesmo se ama. Pela graça santificante, Deus em nós se vê e se ama, e leva-nos a participar disso, das relações íntimas da Santíssima Trindade. É a graça mais importante para nossas vidas, pois é a vida eterna começada, é a comunhão com Deus, é a amizade com Deus, é a participação na vida íntima de Deus, que se realizará com perfeição no céu. Sem ela, sem a graça habitual, sem a graça santificante, somos inimigos de Deus, ainda que examinando-nos a nós mesmos nos pareça que não. Mesmo que os nossos sentimentos traiam-nos, afirmando que somos amigos de Deus, se estamos em pecado mortal, se não estamos na graça santificante, somos inimigos de Deus. E, se morrermos nesse estado - Deus nos livre de tão grande mal, ainda que seja no último momento -, seremos condenados ao inferno.
A graça atual é a que Deus concede a cada momento para o cumprimento do dever. Se somos fiéis a ela, a nossa vida ativa se eleva pouco a pouco, participando da vida contemplativa. Correspondendo às graças atuais, nossa vida ativa tornar-se cada vez mais penetrada pela vida contemplativa, pela presença de Deus. Recebemos a graça atual mesmo se estamos em pecado mortal: é justamente uma graça atual, uma força e inspiração de Deus, que nos leva a rezar e nos leva a nos confessar para nos reconciliarmos com Ele. A graça atual é uma luz e uma força para o cumprimento do dever de cada momento. Se estamos na graça santificante, a graça atual nos leva e nos ajuda a crescer naquela, a progredir na amizade com Deus. Se estamos em pecado mortal, a graça atual é que nos dá força, nos impele, nos ajuda a aproximarmo-nos de Deus novamente. É a graça atual que converte o pecador, pois, quando ele estava no pecado, não possuía a graça santificante.
Pois bem. Gostaria de recomendar a leitura de um livro magnífico, do célebre teólogo dominicano Reginald Garrigou-Lagrange. Estou finalizando a leitura de "A Providência e a confiança em Deus", lançamento da editora Cultor de Livros, que se dedica a uma obra ou missão importantíssima: traduzir para o português grandes obras da literatura cristã não encontradas em nossa língua. Foi o caso d'"As três idades da vida interior", do mesmo escritor, da biografia de São Pedro de Alcântara, patrono do Brasil, e de tantos outros livros editados pela Cultor.
Garrigou-Lagrange levou-me a compreender melhor a imensa graça do cumprimento do dever de cada momento, de cada instante. Recordou-me inclusive algo da logoterapia, que afirma que as nossas escolhas de cada momento na vida, podem ter sentido ou não. Importa fazer escolhas com sentido. É bom, é necessário, é indispensável, em cada instante, em cada momento, em cada atividade, penosa ou prazerosa, fazer a vontade de Deus, para o que Ele nos concede, também a cada momento, a cada instante, a graça atual, a força, o auxílio necessário para cumpri-lo. E, correspondendo a cada graça habitual, mais graças nos são concedidas, e vamos crescendo em santidade.
Ensina Garrigou-Lagrange, com sua habitual simplicidade e clareza:
"Qual a conclusão prática? É que, fazendo o possível para cumprir nossos deveres cotidianos, devemos abandonar-nos quanto ao restante à divina Providência, com a mais filial confiança. E se procurarmos realmente ser fiéis nas pequenas coisas, na prática da humildade, da mansidão, da paciência, nas coisas do dia a dia, o Senhor nos dará a graça de ser fiéis nas coisas grandes e difíceis, caso nos peça para enfrentá-las; e então, nas circunstâncias extremas, ele concederá graças extremas àqueles que o buscam.
[...]
Já vimos por que devemos confiar-nos e abandonar-nos à Providência: devido à sua sabedoria e à sua bondade; e em que devemos confiar-nos a ela: em todas as coisas, quanto à alma e ao corpo, com a condição de cumprir os nossos deveres cotidianos, e lembrando que, se formos fiéis nas pequenas coisas, obteremos a graça de o ser também nas grandes.
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O dever do momento presente tal como o compreenderam os santos, e a luz que ele contém
O dever de cada instante, sob aparências muitas vezes modestas, contém a expressão da vontade de Deus para nós, para nossa vida individual. A Virgem Maria viveu, assim, na união divina cumprindo no dia a dia a vontade de Deus no dever cotidiano de sua vida muito simples, muito comum exteriormente, como a de todas as pessoas de sua condição. Assim viveram todos os santos, fazendo a vontade de Deus tal como se manifestava de hora em hora, sem se deixar perturbar pelas contrariedades imprevistas. Seu segredo estava em tornar-se, a cada momento, aquilo que a ação divina queria fazer deles. Nessa ação, eles viram tudo o que tinham a fazer e a sofrer, todos os seus deveres e todas as suas cruzes. Estavam convencidos de que o acontecimento atual é um sinal de uma vontade ou de uma permissão de Deus para o bem daqueles que o buscam. [...] Os santos veem, assim, na sequência dos acontecimentos, como que um ensinamento providencial, e acreditam que, acima da sucessão dos fatos exteriores de nossa vida, há como que uma série paralela de graças atuais, que nos são incessantemente oferecidas para fazer-nos tirar, desses acontecimentos agradáveis ou desagradáveis, o melhor proveito espiritual.
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Os santos, em circunstâncias semelhantes e mesmo em outras muito piores, dizem: Fazer a cada momento a vontade de Deus é, no fundo, a única coisa necessária. O Senhor nunca ordena o impossível, mas há um dever que, a cada momento, ele torna realmente possível para cada um de nós, e para cujo cumprimento solicita o nosso amor e nossa generosidade.
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O dever que precisamos cumprir a cada hora é, como dizíamos, um sinal da vontade de Deus para nós em particular, hic et nunc [aqui e agora], e contém assim uma luz prática muito santificadora, que é a do Evangelho aplicado às diversas circunstâncias de nossa vida; são realmente as lições de coisas de Deus.
Se, a exemplo dos santos, soubéssemos considerar assim cada momento, veríamos que cada um deles contém não somente um dever a cumprir, mas também uma graça para que sejamos fiéis a esse dever.
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'O momento presente é sempre cheio de tesouros infinitos; seu conteúdo ultrapassa a vossa capacidade. A fé é a medida: nele encontrareis tanto quanto credes. Também o amor é a medida: quanto mais o vosso coração ama, mais ele deseja, e quanto mais deseja, mais encontra. A vontade de Deus se apresenta, a cada instante, com um mar imenso que o vosso coração não pode abarcar. Ele recebe dela segundo a medida em que é expandido pela fé, pela confiança e pelo amor; todo o restante da criação não pode preencher o vosso coração, que tem mais capacidade do que tudo aquilo que não é Deus. As montanhas que impressionam os olhos não passam de átomos no coração. A divina vontade é um abismo, cuja abertura é o momento presente: mergulhai nesse abismo, e o encontrareis sempre maior do que os vossos desejos.'"
Insisto, portanto, na recomendação da leitura do livro e em especial nessa abertura ao infinito, que é o cumprimento do dever do momento do presente, pequeno ou grande, agradável ou difícil, na fidelidade à graça atual oferecida. Concluo com o grande autor espiritual:
"Sejamos assim santamente atentos à graça atual que, de minuto a minuto, nos é oferecida para o cumprimento do dever presente. Veremos, assim, cada vez melhor, o que deve ser a nossa fidelidade nas pequenas coisas como nas grandes."