O erudito João Baptista Villela, Professor Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, autor de "Malformações, Viabilidade e Aborto: Retorno de um Espectro?", Repertório IOB de Jurisprudência, São Paulo, n. 24/94, 2. quinz. dez. 1994, cad. 3:479-475, concedeu entrevista memorável à jornalista Andréia Rocha, do Boletim do IBDFAM, e apenas parcialmente publicada, sob o título "Entre Convicções e Interpretações", na edição n.º 31, março/abril de 2005, p. 9, daquele periódico, que se edita em Belo Horizonte. O texto foi reproduzido no livro: "Direito Fundamental à Vida", São Paulo: Quartier Latin, Centro de Extensão Universitária, 2005, coordenado por Ives Gandra da Silva Martins.
O texto deixa claras a profundidade e a lucidez incomuns do grande civilista, jurista de primeira grandeza, bem como a sua notória capacidade de desfazer sofismas, lugares comuns, falsos esquemas mentais, chavões e pseudo-argumentos acolhidos sem maiores reflexões. Trago alguns excertos:
"A dignidade da pessoa humana, de que tanto se fala, mas de que tão pouco se entende, é incompatível com qualquer distinção entre pessoas, para lhes dar mais ou menos direitos. Crianças, adultos, jovens e anciãos, homens e mulheres, virtuosos e delinquentes, sãos e enfermos - todos têm a mesma dignidade perante o direito, porque todos são pessoas. Ora, segundo esta lógica inerente aos direitos humanos, tampouco se pode distinguir entre os que têm cérebros completos e os que os têm incompletos ou simplesmente não os têm. A Constituição não protege a vida humana dos que têm cérebros ou dos que têm braços ou dos que têm fígado ou dos que têm rins. Ela protege a 'vida humana', simplesmente.
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A mãe, claro, participa da mesma dignidade do filho. Nem mais nem menos. Por isso seria inadmissível - falo de uma gravidez qualquer - sacrificar a vida da mãe para salvar a do filho. O aborto do anencéfalo não prolonga sua vida. Ao contrário, elimina o pouco de vida que ele teria. De modo que a dor da mãe, de levar a termo a gravidez de um filho que terá vida breve, não é necessariamente maior que a dor da mãe de gerar um filho que não conhecerá a luz do mundo.
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O 'moral' e o 'legal' não são conceitos que se repelem. Ao contrário. Embora não se superponham, eles se interpenetram. Nem tudo que é prescrito pela moral é também prescrito pelo direito. Mas tudo que é legal exprime alguma forma de moralidade. Todas as ações humanas estão permeadas pela moral. Assim, um direito 'amoral' não seria um direito para seres humanos.
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Proteger a vida humana, onde quer que ela se manifeste, dentro ou fora de um útero, não é uma interferência. Ou, se se quiser, é uma interferência necessária. Portanto, não excessiva. Neste sentido tanto é interferência tutelar a gravidez de um anencéfalo como cobrar impostos, varrer as ruas, prender os assaltantes ou processar criminalmente um administrador corrupto. Todas essas ações constituem deveres do Estado.
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[...] Conduzir com empenho e responsabilidade qualquer gravidez a seu termo é um dever elementar da mulher, de que a engravidou, da sociedade e do Estado. A manutenção de uma gravidez independe das características somáticas do feto. [...] Ora, aí estaríamos fazendo uma diferença entre os que têm uma sobrevida longa e os que têm uma sobrevida curta. Esta distinção é inaceitável. Uma criança cheia de vida, que acaba de nascer, com um futuro de saúde promissor, vale tanto par ao direito quanto um ancião moribundo à beira da morte. Isto é o que se chama 'dignidade da pessoa humana'. Não fosse assim, deveríamos falar em dignidade 'dos jovens', 'dos saudáveis', 'dos que não padecem deficiência', etc. e não em 'dignidade da pessoa humana'. Por este motivo é que quem atenta contra a vida de um bebê está sujeito às mesmas penas que quem atenta contra a vida de um ancião. O direito não protege a duração da vida, senão a vida mesma pelo tempo - longo ou breve - que durar.
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Uma coisa deve ficar bem clara no debate sobre o aborto. Não é o feto, seja ele anencéfalo ou não, que pediu para ser gerado. Uma vez gerado, pouco importa sob que condições, ele passa a ter a proteção do Estado, como se já tivesse nascido. Ninguém tem mais direito sobre a sua vida. Isto é norma expressa do Código Civil, que não quer saber se o feto goza de boa saúde, se foi concebido por estupro, por incesto ou no sacrossanto recesso de um casto matrimônio. Não vejo razão para ser diferente. Portanto, penso que a legislação que impede a interrupção da gravidez só deve ser mudada para não comportar exceção de qualquer espécie.
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Não há opinião 'estritamente técnica', porque o direito não comporta leitura neutra. Toda interpretação carrega a visão de mundo do agente que a pratica. Mas também não direi que se trata de uma 'opinião pessoal'. O que estou dizendo resulta de regras positivas permeadas pelos valores que informam a cultura jurídica brasileira, particularmente os inscritos na Constituição da República. Convém, entretanto, acrescentar que também não se trata de uma opinião religiosa. A este propósito grassa hoje um enorme equívoco na discussão do tema. [...]
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Pergunta: O senhor acredita que teria essa mesma posição caso fosse mulher e, ainda, se estivesse gerando um ser com nenhuma possibilidade de sobrevida?
Resposta: Uma posição de princípio só é consistente se consegue ultrapassar os limites da experiência pessoal. Portanto, mais uma vez, não é a história de cada um que lhe deve incutir as convicções. São as convicções que determinam sua conduta em cada situação concreta.
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[...] Mas a ausência de viabilidade, como tal, não justifica a eliminação antecipada da vida. Nem constitui impedimento à aquisição plena da personalidade civil. No passado debateu-se muito essa questão: Se a personalidade do homem resulta só do nascimento com vida, ou se ao nascimento haveria de acrescentar-se a condição de viabilidade. Quando da discussão do Código Civil de 1916, Azevedo Marques chegou a propor, para maior segurança, que o Código declarasse expressamente não ser a viabilidade requisito da personalidade civil. Considerou-se desnecessário fazê-lo. E com isso ficamos livre de ter no Código a desconfortável advertência. Não apenas ociosa, mas constrangedora. O critério de viabilidade não só é cientificamente discutível como diz respeito à vida futura. Ora, o direito não exige a vida subsequente para assegurar proteção à vida atual. Onde está presente a vida humana, aí deve estar presente a tutela do direito. Pouco importa a duração. Hitler, é certo, não pensava assim. No seu livro 'Mein Kampf' dizia que, se faltam forças para lutar pela vida - e é nisso que consiste a inviabilidade -, cessa o próprio direito à vida. Felizmente as ideias do 'Führer' são um pesadelo de que a humanidade se livrou. Para sempre, espero."
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[...] Mas a ausência de viabilidade, como tal, não justifica a eliminação antecipada da vida. Nem constitui impedimento à aquisição plena da personalidade civil. No passado debateu-se muito essa questão: Se a personalidade do homem resulta só do nascimento com vida, ou se ao nascimento haveria de acrescentar-se a condição de viabilidade. Quando da discussão do Código Civil de 1916, Azevedo Marques chegou a propor, para maior segurança, que o Código declarasse expressamente não ser a viabilidade requisito da personalidade civil. Considerou-se desnecessário fazê-lo. E com isso ficamos livre de ter no Código a desconfortável advertência. Não apenas ociosa, mas constrangedora. O critério de viabilidade não só é cientificamente discutível como diz respeito à vida futura. Ora, o direito não exige a vida subsequente para assegurar proteção à vida atual. Onde está presente a vida humana, aí deve estar presente a tutela do direito. Pouco importa a duração. Hitler, é certo, não pensava assim. No seu livro 'Mein Kampf' dizia que, se faltam forças para lutar pela vida - e é nisso que consiste a inviabilidade -, cessa o próprio direito à vida. Felizmente as ideias do 'Führer' são um pesadelo de que a humanidade se livrou. Para sempre, espero."
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