terça-feira, 26 de abril de 2016

"UMA INTRODUÇÃO PERDIDA E AGORA ACHADA", GUSTAVO CORÇÃO

Há certos livros que o autor escreve sem pensar no leitor, ou melhor, sem cuidar se existirá algum, ao menos um, que seja capaz de ir até o fundo da obra e lá descobrir a concha e a pérola. Assim fazem os grandes escritores; e também os sábios investigadores que nem sempre podem exprimir de modo fácil o que encontraram. Não devemos nos queixar deles se não os compreendemos, nem é justo dizer que tais autores vivem numa torre de marfim. Se o que produzem é verdadeiro, não será isolado. Pode acontecer que a conjuntura cultural torne difícil a comunicação da obra, mas se é genuína, a obra é essencialmente comum e comunicável. Alcem-se nos pés os de pequena estatura que queiram lê-la; aproximem-se os que estiverem longe; mas não exijam do autor um rebaixamento os que de si mesmos não exigem o esforço de elevação. Não há situação sociológica, política ou econômica que possa contestar o direito à grandeza e à dificuldade que dela decorre; nem podemos reclamar uma arte para o povo sem trairmos o que há de mais humano no homem, e portanto sem trairmos o mesmo povo que sonhamos servir. Quem reclama do artista uma poesia mais popular e imediata devia reclamar também dos físicos uma ciência menos rebarbativa. É verdade que todos pressentem os elos que ligam as fórmulas abstratas aos resultados concretos. A técnica justifica e populariza a ciência. A divulgação das utilidades explica a reclusão dos matemáticos, e assim esses prestigitadores de dificuldades merecem a estima dos povos e as verbas dos orçamentos. Mas a função civilizadora daqueles que praticam o alpinismo das artes ou da filosofia, embora não pareça, é ainda maior do que a dos manipuladores de utilidades, porque opera uma elevação naquilo que o homem tem de mais humano. Além disso cumpre notar que a elevação, embora torne difícil o contrato imediato, torna mais fácil o congraçamento. É por mastros, faróis e cumes que os homens se orientam; é em torno de sinais elevados que se unem.

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– Trecho inicial de "Uma Introdução perdida e agora achada" de "Claro Escuro - Ensaios sobre casamento, divórcio, amor, sexo e outros assuntos", de Gustavo Corção, sobre a qual disse o autor:
 
"Esta introdução tinha sido feita para o presente livro e depois foi perdida e esquecida. Tornando a achá-la hoje, fiquei contente e tive a ideia, não sei se boa ou má, de oferecê-la como uma espécie de bonificação suplementar aos leitores desta nova edição [3.ª, 1963]."

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