Há certos livros que o autor
escreve sem pensar no leitor, ou melhor, sem cuidar se existirá algum, ao menos
um, que seja capaz de ir até o fundo da obra e lá descobrir a concha e a
pérola. Assim fazem os grandes escritores; e também os sábios investigadores
que nem sempre podem exprimir de modo fácil o que encontraram. Não devemos nos
queixar deles se não os compreendemos, nem é justo dizer que tais autores vivem
numa torre de marfim. Se o que produzem é verdadeiro, não será isolado. Pode acontecer que a conjuntura
cultural torne difícil a comunicação da obra, mas se é genuína, a obra é
essencialmente comum e comunicável. Alcem-se nos pés os de
pequena estatura que queiram lê-la; aproximem-se os que estiverem longe; mas
não exijam do autor um rebaixamento os que de si mesmos não exigem o esforço de
elevação. Não há situação sociológica,
política ou econômica que possa contestar o direito à grandeza e à dificuldade
que dela decorre; nem podemos reclamar uma arte para o povo sem trairmos o que
há de mais humano no homem, e portanto sem trairmos o mesmo povo que sonhamos
servir. Quem reclama do artista uma
poesia mais popular e imediata devia reclamar também dos físicos uma ciência
menos rebarbativa. É verdade que todos pressentem os elos que ligam as fórmulas
abstratas aos resultados concretos. A técnica justifica e populariza a ciência.
A divulgação das utilidades explica a reclusão dos matemáticos, e assim esses
prestigitadores de dificuldades merecem a estima dos povos e as verbas dos
orçamentos. Mas a função civilizadora daqueles que praticam o alpinismo das
artes ou da filosofia, embora não pareça, é ainda maior do que a dos
manipuladores de utilidades, porque opera uma elevação naquilo que o homem tem
de mais humano. Além disso cumpre notar que a elevação, embora torne difícil o
contrato imediato, torna mais fácil o congraçamento. É por mastros, faróis e
cumes que os homens se orientam; é em torno de sinais elevados que se unem.
*
– Trecho inicial de "Uma Introdução perdida e agora achada" de "Claro Escuro - Ensaios sobre casamento, divórcio, amor, sexo e outros assuntos", de Gustavo Corção, sobre a qual disse o autor:
"Esta introdução tinha sido feita para o presente livro e depois foi perdida e esquecida. Tornando a achá-la hoje, fiquei contente e tive a ideia, não sei se boa ou má, de oferecê-la como uma espécie de bonificação suplementar aos leitores desta nova edição [3.ª, 1963]."
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