sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

MERVAL PEREIRA

Todas as vezes que vejo o Merval Pereira na televisão, normalmente no Jornal das 10, acontece-me uma coisa estranha, aparentemente um estalo do inconsciente: dá-me vontade de me mudar, com a cara e a coragem, e talvez com alguma irresponsabilidade, para a cidade do Rio de Janeiro.

Considero-me um bom observador e passei a buscar as razões ocultas desse desejo instintivo, e por que não dizer, intuitivo, bem pouco racional. Não me foi tão difícil a descoberta. Merval Pereira pertence à Academia Brasileira de Letras, lembra-me um grande escritor, que não se curvava às pompas e glórias do mundo, sabedor de que são vãs. Trata-se de um verdadeiro imortal, bem mais imorredouro do que os da Academia, muitos deles dotados de uma imortalidade de convenção.

Sem que eu faça força, ou sem que tenha tempo de defender-me, Merval Pereira recorda-me Gustavo Corção Braga e o palco das suas lutas, o ambiente sagrado das suas incríveis, árduas e sublimes batalhas, também das suas amargas humilhações: a cidade do Rio de Janeiro.

As humilhações continuam a persegui-lo, pois, além de não se encontrar no lugar reservado aos imortais e proporcionado aos seus méritos, o modesto túmulo de Corção, que já tive a oportunidade de visitar e venerar, é ridícula e infinitamente menos conhecido e visitado que o de Cazuza e de sei lá mais quem. É um verdadeiro e austero sepulcro de oblato beneditino, autêntico servo de Jesus Cristo. De um servo de Jesus Cristo que o acompanhou até o calvário, sem medo das cusparadas ou de maiores consequências, como o apóstolo São João.

Por aí se vê em que trágico e deplorável estado de coisas se encontra o país de Gilmar Mendes, que só não é mais cômico e mais trágico porque atingiu a degradação infinita.

Sem dúvida, Gustavo Corção Braga é o brasileiro que mais admiro, pela exuberância da inteligência, pelo refinamento da escrita, pela lógica e beleza dos argumentos, pela perfeição do estilo, pela agudeza das percepções, pela vastidão da cultura, pelo desprezo das falsas pompas deste mundo. É um Agostinho nacional, esse que para mim é o mais honesto e sincero dos escritores. Nós lemos e bebemos a alma de Corção nos seus textos.

Salve a gloriosa cidade do Rio de Janeiro, adornada pela beleza natural, pela beleza arquitetônica e pelos méritos desse grande escritor e herói da fé, que em 17 de dezembro fez mais um aniversário!


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

TILLY


Permanecendo em Viena, tive também a oportunidade de conhecer no hospital minha primeira mulher, Tilly Grosser. Ela era enfermeira na seção do professor Donath. Tilly logo me chamou a atenção porque, na minha opinião à época, ela se parecia com uma dançarina espanhola. Na verdade, acabamos ficando juntos porque Tilly queria que eu me apaixonasse por ela a fim de vingar sua melhor amiga, com quem eu havia começado algo que não foi em frente. Descobri o motivo rapidamente e não escondi isso a ela. Ela ficou bastante impressionada.
 
Seria preciso dizer, porém, que o ponto mais significativo de nosso relacionamento não foi aquele que costumamos imaginar; pois eu não me casei com ela por sua beleza, e ela não se casou comigo por minha "inteligência" – e nos orgulhávamos disso, por esses não terem sido o motivo do nosso casamento.
 
Claro que eu estava impressionado com sua beleza, mas fui conquistado por sua essência – como posso dizer? –, por sua compreensão da natureza, pela cadência do seu coração. Quero dar um exemplo: a mãe de Tilly estava prestes a perder sua garantia contra a deportação, à qual tinha direito por Tilly ser enfermeira. É que certo dia se decidiu que essa garantia contra a deportação não valia mais para dependentes. Um pouco antes da meia-noite, quando ela caducaria, a campainha tocou. Tilly e eu estávamos visitando a mãe dela. Mas ninguém ousou abrir a porta, tratava-se da intimação à deportação. Finalmente, um de nós foi atender à campainha – e quem estava diante da porta? Um mensageiro da comunidade cultural, convocando-a para assumir na manhã seguinte seu posto como recém-nomeada ajudante da arrumação dos móveis das casas dos judeus recém-deportados. Ao mesmo tempo, ele entregou à mãe de Tilly um certificado que lhe restituía automaticamente sua garantia contra a deportação.
 
O mensageiro deixou a casa, nós três voltamos a nos sentar, e nos entreolhamos, sorrimos uns para os outros. A primeira pessoa que conseguiu encontrar uma palavra foi Tilly. E o que ela disse?
 
– Ora, Deus não é maravilhoso?
 
Essa foi a teologia mais bonita e, especialmente, a mais breve summa theologiae, para falar como os tomistas, que eu já ouvi!
 
O que me levou a casar com Tilly? Certo dia ela estava preparando a comida na minha casa, ou melhor, na casa de meus pais, na Czerningasse, quando o telefone tocou. O Hospital Rothschild me chamava com urgência: um clínico tinha acabado de avisar de um caso de envenenamento por soníferos, perguntando-me se eu não poderia empregar minhas artes de neurocirurgia. Não deixei nem que me fizessem um café, coloquei apenas alguns grãos de café na boca e mastiguei enquanto corria para um táxi.
 
Duas horas depois, eu estava de volta, o almoço em família estava arruinado. Claro que eu supunha que os outros já tinham comido, o que meus pais realmente haviam feito. Mas Tilly havia esperado e sua primeira reação não foi: "Puxa vida, finalmente você voltou, fiquei esperando com a comida".
 
– Como foi a operação, como está o paciente? – foi o que ela disse.
 
Nesse instante, decidi-me a fazer dessa moça minha mulher, não porque ela era isso ou aquilo para mim, mas porque ela era ela.
 
Já estávamos no campo de concentração quando lhe dei uma lembrancinha que consegui arranjar para o seu 23.º aniversário (creio), e escrevi: "Para seu dia, desejo – para mim – que você se mantenha fiel a você". Ou seja, um paradoxo duplo: era o aniversário dela e eu estava desejando algo para mim e não para ela, e isso consistia em ela se manter fiel a ela mesma e não a mim.
 
 
Trecho extraído de: Viktor Emil Frankl. O que não está escrito nos meus livros. Memórias. Tradução de Cláudia Abeling. São Paulo: É Realizações, 2010. pp. 101-2.
 
 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

DUAS POBREZAS E DUAS FORÇAS


“Sim, meu padrasto. Nesse tempo minha mãe se casara de novo com um personagem fabuloso que os filhos haviam descoberto nas matas do Trapicheiro. Era uma espécie de guarda-florestal que vivia numa caverna e usava barbas terríveis, atrás de cuja sombra brilhavam olhos de mel e escondia-se o melhor coração das redondezas. Para nós ele era uma espécie de meio-termo entre o Capitão Nemo e Miguel Strogoff. E tanto insistimos que mamãe quis conhecer o prodígio pelo qual seus filhos estavam apaixonados, e apaixonou-se por ele também. Casaram-se com simplicidade, casando as duas pobrezas, mas também as duas forças.” (Gustavo Corção. “Dia das Mães”, in “Conversa em sol menor”, Agir)

No dia de hoje, 14 de dezembro, a Igreja celebra a memória de São João da Cruz, doutor da Igreja, pai e reformador do Carmelo. Por coincidência, tive a felicidade, nesta manhã, de meditar num trecho do “Cântico Espiritual” do doutor místico, justamente aquele em que ele começa a falar sobre o matrimônio místico, o mais alto estado espiritual a que uma pessoa pode chegar nesta vida. É um estado de completa união com Deus, de união transformante, em que a alma é necessária e previamente confirmada na graça santificante. Trata-se da Canção XXII.

São João da Cruz faz uma bela comparação, que espero ter compreendido. Diz ele que, assim como na consumação do matrimônio, homem e mulher tornam-se uma só carne, na consumação do matrimônio místico ou espiritual, a alma e o Filho de Deus tornam-se uma só coisa: Deus. A alma torna-se Deus por participação. As propriedades e virtudes de Deus comunicam-se à alma. A alma fica toda consumida, absorvida e incendiada pelo grande sol que é Deus. A alma é toda de Deus, e Deus, por assim dizer, é todo da alma.

Santa Teresa leva sobre São João da Cruz a vantagem de escrever de forma mais solta, espontânea, bela e original. Por outro lado, São João da Cruz leva sobre Santa Teresa a vantagem de ser mais metódico, mais sistemático e mais claro. Além de deter maior rigor teológico – ele que estudou em Salamanca – e, por que não dizer, filosófico. São perceptíveis as influências do tomismo em sua obra.

Recomendo, pois, a leitura de São João da Cruz, especialmente a do “Cântico Espiritual”, que fornece-nos uma noção luminosa, um itinerário seguro a seguir em nossa vida espiritual. Fica clara a meta. Ficam evidentes os meios e o caminho.

Contudo, feita essa longa digressão, queria retomar o assunto do primeiro parágrafo. É que neste mesmo dia me veio às vagas da memória a descrição que Corção faz sobre o casamento da sua mãe viúva com o seu amável padrasto, seu Castanheira. Veio-me imprecisamente a frase: “Uniram as duas pobrezas e as duas forças”, mas depois fui beber na fonte, fui consultar o trecho, e a citação correta é: “Casaram-se com simplicidade, casando as duas pobrezas, mas também as duas forças”.

Não sei se eu sou, se nós somos capazes de avaliar a beleza dessa frase, a poesia desse pensamento. Ele é de uma verdade, de uma humanidade e luminosidade infinitas. Há alguma grandeza insuspeitada oculta nesse trecho. Uma espécie de segredo velado, de grande verdade universal. No final das contas, penso, todo casamento é assim: a união de duas pobrezas, totalmente dependentes de Deus, e de duas forças. Forças que Deus pôs nas duas pobrezas pela natureza, como dons naturais, e que quer infundir nelas mediante a graça, como dons sobrenaturais. Como é bonita, generosa, sólida, fecunda, durável, estável e admirável essa união de pobrezas e de forças! É uma poesia maior do que o céu!

Espantou-me muito que o doutor místico, padre, frade, asceta, celibatário, carmelita, não tenha encontrado figura mais perfeita para o mais alto grau da vida contemplativa que o casamento. E mais: que tenha comparado a consumação do matrimônio místico com a consumação do matrimônio humano. Isso deve significar que o casamento, que o matrimônio, realmente seja algo tão grande que não saibamos avaliar bem, compreender em toda a sua altura, largura e extensão. Deve ser realmente um oculto segredo, um incompreensível mistério. Porém, no matrimônio espiritual, ao contrário do matrimônio humano, há o encontro de uma total pobreza com uma total riqueza. De um absoluto nada e fraqueza com um total tudo e fortaleza.

Trago, então, para fechar com chave de ouro, mais uma simples e esplendorosa descrição do amor de Castanheira e Gracietta Corção:

“Conheceram-se, amaram-se, casaram-se. Com o desenvolvimento desses três verbos eu escreveria um belíssimo romance se para tanto tivera engenho e arte, e se a Luta me concedesse férias amplas e repousadas (Os telefones, dez ou vinte vezes por dia, querem saber o que penso da reunião da CNBB em Itaici.)

Ao menos três ou quatro linhas escrevo entre os dois últimos verbos. Foi mansamente fulgurante a passagem do conhecimento para o amor, em longas conversas, e silêncios mais longos nos bancos de pedra do Trapicheiro. E depois as visitas noturnas de seu Castanheira. A criançada ia às oito e tanto para a cama, e eles dois prolongavam a conversa na sala sob a teórica vigilância da Zezé, ex escrava e ama-seca da Mamãe, que esteve sempre com ela, na fartura e na pobreza. Outro salto infinito. Uma curta digressão: é impossível, sem uma espécie de sumária guilhotina, contar a mais simples das histórias, povoada de meia-dúzia ou dúzia e meia de infinitos.” (“Os dois portugueses”, in “Conversa em sol menor”)