sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

TILLY


Permanecendo em Viena, tive também a oportunidade de conhecer no hospital minha primeira mulher, Tilly Grosser. Ela era enfermeira na seção do professor Donath. Tilly logo me chamou a atenção porque, na minha opinião à época, ela se parecia com uma dançarina espanhola. Na verdade, acabamos ficando juntos porque Tilly queria que eu me apaixonasse por ela a fim de vingar sua melhor amiga, com quem eu havia começado algo que não foi em frente. Descobri o motivo rapidamente e não escondi isso a ela. Ela ficou bastante impressionada.
 
Seria preciso dizer, porém, que o ponto mais significativo de nosso relacionamento não foi aquele que costumamos imaginar; pois eu não me casei com ela por sua beleza, e ela não se casou comigo por minha "inteligência" – e nos orgulhávamos disso, por esses não terem sido o motivo do nosso casamento.
 
Claro que eu estava impressionado com sua beleza, mas fui conquistado por sua essência – como posso dizer? –, por sua compreensão da natureza, pela cadência do seu coração. Quero dar um exemplo: a mãe de Tilly estava prestes a perder sua garantia contra a deportação, à qual tinha direito por Tilly ser enfermeira. É que certo dia se decidiu que essa garantia contra a deportação não valia mais para dependentes. Um pouco antes da meia-noite, quando ela caducaria, a campainha tocou. Tilly e eu estávamos visitando a mãe dela. Mas ninguém ousou abrir a porta, tratava-se da intimação à deportação. Finalmente, um de nós foi atender à campainha – e quem estava diante da porta? Um mensageiro da comunidade cultural, convocando-a para assumir na manhã seguinte seu posto como recém-nomeada ajudante da arrumação dos móveis das casas dos judeus recém-deportados. Ao mesmo tempo, ele entregou à mãe de Tilly um certificado que lhe restituía automaticamente sua garantia contra a deportação.
 
O mensageiro deixou a casa, nós três voltamos a nos sentar, e nos entreolhamos, sorrimos uns para os outros. A primeira pessoa que conseguiu encontrar uma palavra foi Tilly. E o que ela disse?
 
– Ora, Deus não é maravilhoso?
 
Essa foi a teologia mais bonita e, especialmente, a mais breve summa theologiae, para falar como os tomistas, que eu já ouvi!
 
O que me levou a casar com Tilly? Certo dia ela estava preparando a comida na minha casa, ou melhor, na casa de meus pais, na Czerningasse, quando o telefone tocou. O Hospital Rothschild me chamava com urgência: um clínico tinha acabado de avisar de um caso de envenenamento por soníferos, perguntando-me se eu não poderia empregar minhas artes de neurocirurgia. Não deixei nem que me fizessem um café, coloquei apenas alguns grãos de café na boca e mastiguei enquanto corria para um táxi.
 
Duas horas depois, eu estava de volta, o almoço em família estava arruinado. Claro que eu supunha que os outros já tinham comido, o que meus pais realmente haviam feito. Mas Tilly havia esperado e sua primeira reação não foi: "Puxa vida, finalmente você voltou, fiquei esperando com a comida".
 
– Como foi a operação, como está o paciente? – foi o que ela disse.
 
Nesse instante, decidi-me a fazer dessa moça minha mulher, não porque ela era isso ou aquilo para mim, mas porque ela era ela.
 
Já estávamos no campo de concentração quando lhe dei uma lembrancinha que consegui arranjar para o seu 23.º aniversário (creio), e escrevi: "Para seu dia, desejo – para mim – que você se mantenha fiel a você". Ou seja, um paradoxo duplo: era o aniversário dela e eu estava desejando algo para mim e não para ela, e isso consistia em ela se manter fiel a ela mesma e não a mim.
 
 
Trecho extraído de: Viktor Emil Frankl. O que não está escrito nos meus livros. Memórias. Tradução de Cláudia Abeling. São Paulo: É Realizações, 2010. pp. 101-2.
 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário