quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

DUAS POBREZAS E DUAS FORÇAS


“Sim, meu padrasto. Nesse tempo minha mãe se casara de novo com um personagem fabuloso que os filhos haviam descoberto nas matas do Trapicheiro. Era uma espécie de guarda-florestal que vivia numa caverna e usava barbas terríveis, atrás de cuja sombra brilhavam olhos de mel e escondia-se o melhor coração das redondezas. Para nós ele era uma espécie de meio-termo entre o Capitão Nemo e Miguel Strogoff. E tanto insistimos que mamãe quis conhecer o prodígio pelo qual seus filhos estavam apaixonados, e apaixonou-se por ele também. Casaram-se com simplicidade, casando as duas pobrezas, mas também as duas forças.” (Gustavo Corção. “Dia das Mães”, in “Conversa em sol menor”, Agir)

No dia de hoje, 14 de dezembro, a Igreja celebra a memória de São João da Cruz, doutor da Igreja, pai e reformador do Carmelo. Por coincidência, tive a felicidade, nesta manhã, de meditar num trecho do “Cântico Espiritual” do doutor místico, justamente aquele em que ele começa a falar sobre o matrimônio místico, o mais alto estado espiritual a que uma pessoa pode chegar nesta vida. É um estado de completa união com Deus, de união transformante, em que a alma é necessária e previamente confirmada na graça santificante. Trata-se da Canção XXII.

São João da Cruz faz uma bela comparação, que espero ter compreendido. Diz ele que, assim como na consumação do matrimônio, homem e mulher tornam-se uma só carne, na consumação do matrimônio místico ou espiritual, a alma e o Filho de Deus tornam-se uma só coisa: Deus. A alma torna-se Deus por participação. As propriedades e virtudes de Deus comunicam-se à alma. A alma fica toda consumida, absorvida e incendiada pelo grande sol que é Deus. A alma é toda de Deus, e Deus, por assim dizer, é todo da alma.

Santa Teresa leva sobre São João da Cruz a vantagem de escrever de forma mais solta, espontânea, bela e original. Por outro lado, São João da Cruz leva sobre Santa Teresa a vantagem de ser mais metódico, mais sistemático e mais claro. Além de deter maior rigor teológico – ele que estudou em Salamanca – e, por que não dizer, filosófico. São perceptíveis as influências do tomismo em sua obra.

Recomendo, pois, a leitura de São João da Cruz, especialmente a do “Cântico Espiritual”, que fornece-nos uma noção luminosa, um itinerário seguro a seguir em nossa vida espiritual. Fica clara a meta. Ficam evidentes os meios e o caminho.

Contudo, feita essa longa digressão, queria retomar o assunto do primeiro parágrafo. É que neste mesmo dia me veio às vagas da memória a descrição que Corção faz sobre o casamento da sua mãe viúva com o seu amável padrasto, seu Castanheira. Veio-me imprecisamente a frase: “Uniram as duas pobrezas e as duas forças”, mas depois fui beber na fonte, fui consultar o trecho, e a citação correta é: “Casaram-se com simplicidade, casando as duas pobrezas, mas também as duas forças”.

Não sei se eu sou, se nós somos capazes de avaliar a beleza dessa frase, a poesia desse pensamento. Ele é de uma verdade, de uma humanidade e luminosidade infinitas. Há alguma grandeza insuspeitada oculta nesse trecho. Uma espécie de segredo velado, de grande verdade universal. No final das contas, penso, todo casamento é assim: a união de duas pobrezas, totalmente dependentes de Deus, e de duas forças. Forças que Deus pôs nas duas pobrezas pela natureza, como dons naturais, e que quer infundir nelas mediante a graça, como dons sobrenaturais. Como é bonita, generosa, sólida, fecunda, durável, estável e admirável essa união de pobrezas e de forças! É uma poesia maior do que o céu!

Espantou-me muito que o doutor místico, padre, frade, asceta, celibatário, carmelita, não tenha encontrado figura mais perfeita para o mais alto grau da vida contemplativa que o casamento. E mais: que tenha comparado a consumação do matrimônio místico com a consumação do matrimônio humano. Isso deve significar que o casamento, que o matrimônio, realmente seja algo tão grande que não saibamos avaliar bem, compreender em toda a sua altura, largura e extensão. Deve ser realmente um oculto segredo, um incompreensível mistério. Porém, no matrimônio espiritual, ao contrário do matrimônio humano, há o encontro de uma total pobreza com uma total riqueza. De um absoluto nada e fraqueza com um total tudo e fortaleza.

Trago, então, para fechar com chave de ouro, mais uma simples e esplendorosa descrição do amor de Castanheira e Gracietta Corção:

“Conheceram-se, amaram-se, casaram-se. Com o desenvolvimento desses três verbos eu escreveria um belíssimo romance se para tanto tivera engenho e arte, e se a Luta me concedesse férias amplas e repousadas (Os telefones, dez ou vinte vezes por dia, querem saber o que penso da reunião da CNBB em Itaici.)

Ao menos três ou quatro linhas escrevo entre os dois últimos verbos. Foi mansamente fulgurante a passagem do conhecimento para o amor, em longas conversas, e silêncios mais longos nos bancos de pedra do Trapicheiro. E depois as visitas noturnas de seu Castanheira. A criançada ia às oito e tanto para a cama, e eles dois prolongavam a conversa na sala sob a teórica vigilância da Zezé, ex escrava e ama-seca da Mamãe, que esteve sempre com ela, na fartura e na pobreza. Outro salto infinito. Uma curta digressão: é impossível, sem uma espécie de sumária guilhotina, contar a mais simples das histórias, povoada de meia-dúzia ou dúzia e meia de infinitos.” (“Os dois portugueses”, in “Conversa em sol menor”)

Nenhum comentário:

Postar um comentário