“Sim, meu padrasto. Nesse
tempo minha mãe se casara de novo com um personagem fabuloso que os filhos
haviam descoberto nas matas do Trapicheiro. Era uma espécie de guarda-florestal
que vivia numa caverna e usava barbas terríveis, atrás de cuja sombra brilhavam
olhos de mel e escondia-se o melhor coração das redondezas. Para nós ele era
uma espécie de meio-termo entre o Capitão Nemo e Miguel Strogoff. E tanto
insistimos que mamãe quis conhecer o prodígio pelo qual seus filhos estavam
apaixonados, e apaixonou-se por ele também. Casaram-se com simplicidade,
casando as duas pobrezas, mas também as duas forças.” (Gustavo Corção. “Dia das Mães”, in “Conversa em sol menor”, Agir)
No
dia de hoje, 14 de dezembro, a Igreja celebra a memória de São João da Cruz,
doutor da Igreja, pai e reformador do Carmelo. Por coincidência, tive a
felicidade, nesta manhã, de meditar num trecho do “Cântico Espiritual” do
doutor místico, justamente aquele em que ele começa a falar sobre o matrimônio
místico, o mais alto estado espiritual a que uma pessoa pode chegar nesta
vida. É um estado de completa união com Deus, de união transformante, em que a
alma é necessária e previamente confirmada na graça santificante. Trata-se da Canção XXII.
São
João da Cruz faz uma bela comparação, que espero ter compreendido. Diz ele que,
assim como na consumação do matrimônio, homem e mulher tornam-se uma só carne,
na consumação do matrimônio místico ou espiritual, a alma e o Filho de Deus
tornam-se uma só coisa: Deus. A alma torna-se Deus por participação. As propriedades e virtudes de Deus comunicam-se à alma. A alma fica toda consumida, absorvida e incendiada pelo grande sol que é Deus. A alma é
toda de Deus, e Deus, por assim dizer, é todo da alma.
Santa Teresa leva sobre São João da Cruz a vantagem de escrever de forma mais solta, espontânea, bela e original. Por outro lado, São João da Cruz leva sobre Santa Teresa a vantagem de ser mais metódico, mais sistemático e mais claro. Além de deter maior rigor teológico – ele que estudou em Salamanca – e, por que não dizer, filosófico. São perceptíveis as influências do tomismo em sua obra.
Recomendo,
pois, a leitura de São João da Cruz, especialmente a do “Cântico Espiritual”,
que fornece-nos uma noção luminosa, um itinerário seguro a seguir em nossa vida
espiritual. Fica clara a meta. Ficam evidentes os meios e o caminho.
Contudo,
feita essa longa digressão, queria retomar o assunto do primeiro parágrafo. É que neste
mesmo dia me veio às vagas da memória a descrição que Corção faz sobre o
casamento da sua mãe viúva com o seu amável padrasto, seu Castanheira. Veio-me
imprecisamente a frase: “Uniram as duas pobrezas e as duas forças”, mas depois
fui beber na fonte, fui consultar o trecho, e a citação correta é: “Casaram-se com simplicidade, casando as
duas pobrezas, mas também as duas forças”.
Não
sei se eu sou, se nós somos capazes de avaliar a beleza dessa frase, a poesia
desse pensamento. Ele é de uma verdade, de uma humanidade e luminosidade
infinitas. Há alguma grandeza insuspeitada oculta nesse trecho. Uma espécie de segredo velado, de grande
verdade universal. No final das contas, penso, todo casamento é assim: a união
de duas pobrezas, totalmente dependentes de Deus, e de duas forças. Forças que
Deus pôs nas duas pobrezas pela natureza, como dons naturais, e que quer infundir nelas mediante a graça, como dons sobrenaturais. Como é
bonita, generosa, sólida, fecunda, durável, estável e admirável essa união
de pobrezas e de forças! É uma poesia maior do que o céu!
Espantou-me
muito que o doutor místico, padre, frade, asceta, celibatário, carmelita, não tenha
encontrado figura mais perfeita para o mais alto grau da vida contemplativa que o
casamento. E mais: que tenha comparado a consumação do matrimônio místico com a
consumação do matrimônio humano. Isso deve significar que o casamento, que o
matrimônio, realmente seja algo tão grande que não saibamos avaliar bem, compreender em toda a sua altura, largura e extensão. Deve ser realmente um oculto segredo, um incompreensível mistério. Porém, no matrimônio espiritual, ao contrário do matrimônio humano, há o encontro de uma total pobreza com uma total riqueza. De um absoluto nada e fraqueza com um total tudo e fortaleza.
Trago,
então, para fechar com chave de ouro, mais uma simples e esplendorosa descrição do amor de Castanheira e
Gracietta Corção:
“Conheceram-se, amaram-se,
casaram-se. Com o desenvolvimento desses três verbos eu escreveria um belíssimo
romance se para tanto tivera engenho e arte, e se a Luta me concedesse férias
amplas e repousadas (Os telefones, dez ou vinte vezes por dia, querem saber o
que penso da reunião da CNBB em Itaici.)
Ao menos três ou quatro
linhas escrevo entre os dois últimos verbos. Foi mansamente fulgurante a
passagem do conhecimento para o amor, em longas conversas, e silêncios mais
longos nos bancos de pedra do Trapicheiro. E depois as visitas noturnas de seu
Castanheira. A criançada ia às oito e tanto para a cama, e eles dois prolongavam
a conversa na sala sob a teórica vigilância da Zezé, ex escrava e ama-seca da
Mamãe, que esteve sempre com ela, na fartura e na pobreza. Outro salto
infinito. Uma curta digressão: é impossível, sem uma espécie de sumária
guilhotina, contar a mais simples das histórias, povoada de meia-dúzia ou dúzia
e meia de infinitos.” (“Os
dois portugueses”, in “Conversa em sol menor”)
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