quinta-feira, 19 de março de 2015

JOSÉ, O MAIOR DE TODOS


19 de março é dia da Solenidade de São José, Esposo de Maria e Padroeiro da Igreja Universal. Essa data consta do Catecismo da Igreja Católica e do Código de Direito Canônico como dia santo de guarda, de preceito, de missa obrigatória. No Brasil, essa data tão importante só não é dia de preceito porque a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, com autorização da Santa Sé, exerceu a faculdade de excluir dias santos de guarda do calendário.

Dizem os teólogos que São José é o maior de todos os santos, depois de Nossa Senhora. Há até um nome técnico para o culto que lhe devemos: “protodulia”. “Latria” é o amor de adoração, que devemos apenas a Deus. “Dulia” é o amor de veneração que devemos aos anjos e aos santos. “Proto” quer dizer primeiro, por isso Santo Estêvão é protomártir, o primeiro mártir. São José é o primeiro entre os santos, daí porque merece uma veneração especial. E, acima de São José, está a sua esposa imaculada, a Virgem Santíssima, a quem devemos o amor de “hiperdulia”, uma dulia multiplicada, levada ao mais alto grau. Abaixo de Deus e de Nossa Senhora, mas acima de todos os anjos – que coisa espantosa um ser humano tornar-se mais puro e perfeito que as mais puras e perfeitas criaturas espirituais! –, acima dos anjos da mais alta hierarquia, os serafins, encontra-se o glorioso São José.

A Igreja com toda razão invoca o santo Patriarca em todas as suas necessidades. Com intuição divina, percebeu a Igreja que aquelas palavras do Antigo Testamento, relativas a José do Egito, com mais razão ainda aplicam-se a São José: “Ide a José”. São José, o santo do silêncio, o santo escondido, o que mais se esconde, o santo da humildade, o amante da pobreza e da discrição, o amigo de Santa Teresa e patrono dos carmelitas.

A Igreja contém vários dias de festa dedicados a Nossa Senhora. Mas os santos, em regra, possuem apenas um único dia litúrgico. São José, ao lado de apenas outros três santos, possui dois dias festivos: 19 de março e 1.º de maio, este dia de São José Operário. Apenas São Pedro, São Paulo e São João Batista possuem também dois dias de festa durante o ano litúrgico.

Como é grande São José! Diz Santo Alberto Magno: “São José foi varão perfeito, referente à justiça, pela constância da fé; quanto à temperança, pela virtude da castidade; quanto à prudência, pela excelência da discrição; quanto à fortaleza, pela energia do trabalho. Encontramos em São José as quatro virtudes cardeais em grau máximo.”

Dois livros despertaram em mim uma especial devoção a São José, embora, infelizmente, ainda se trate de uma devoção tão mal vivida, pois eu não imito as suas virtudes. São eles: “José, o silencioso”, de Michel Gasnier, O.P., da Editora Quadrante, que considero o mais completo que já li sobre o assunto até hoje, e “São José, guardião eucarístico”, um livrinho inflamado da lavra de São Pedro Julião Eymard, da Editora Ecclesiae. Quisera eu que todos lessem e meditassem, ruminassem o quanto escrito nesses dois livros.

Diz São Pedro Julião Eymard: “Josué dominou o sol, José ensina o criador do sol a caminhar”. Acrescenta ele: “Entre a inumerável multidão dos santos, não encontramos nenhum que tenha sido elevado a uma dignidade comparável à de São José; ele foi o pai legal do Filho de Deus feito homem. Eis um simples homem a quem o Filho de Deus vai chamar de pai, a quem obedecerá e pedirá a bênção paterna. O Pai Celeste despojou-se, de certo modo, de seus direitos sobre o Filho, depositando-o aos cuidados de José; enquanto menino, Jesus será submisso a São José (cf. Luc 2, 51).”

Como os santos foram na terra, continuam sendo no céu. Também no céu, diz mais São Pedro Julião, José é reverenciado como pai, pelos anjos e pelos santos. Maria, a Rainha do Universo, chama-o e honra-o como esposo.

Afirmava São Gregório Nazianzeno: “O Senhor conjugou em José, como num sol, tudo aquilo que os outros santos têm em conjunto de luz e de esplendor”. Não nos iludamos, pois, com a humildade e a vida oculta de São José, com a sua santidade sem estrépito, paixão dos verdadeiros místicos e espirituais.

Leão XIII, na Encíclica Quaquam pluries, de 5 de agosto de 1889, assevera: “É verdade que a dignidade de Mãe de Deus é tão alta que nada a pode ultrapassar. Porém, como existe entre a Virgem e José um laço conjugal, não há a menor dúvida de que ele se aproximou mais do que ninguém dessa dignidade supereminente que coloca a Mãe de Deus muito acima de todas as criaturas”. O Papa Pio IX proclamou-o Padroeiro da Igreja Universal. Santa Teresa de Ávila refere, no Livro da Vida, que, ao contrário de outros santos que parecem ter o poder de conceder determinados tipos de graças, São José, pela sua experiência, tem poder para conceder qualquer tipo de graça, para socorrer em qualquer necessidade.

Sentencia a primeira mulher a ser proclamada Doutora da Igreja: “Não me lembro de até hoje lhe ter pedido alguma coisa que não ma tenha concedido, nem posso pensar sem admiração nas graças que Deus me tem concedido por sua intercessão e nos perigos de que me tem livrado, tanto para a alma como para o corpo. Parece-me que Deus concede aos outros santos a graça de nos auxiliar nesta ou naquela necessidade, mas sei por experiência que São José nos socorre em todas, como se Nosso Senhor quisesse fazer-nos compreender que, assim como Ele lhe era submisso na terra, porque estava no lugar de pai e como tal era chamado, também no céu não pode recusar-lhe nada”.

Como é bela aquela oração que o Papa Leão XIII redigiu para São José, visando a defesa da Igreja, que atravessava e atravessa tempos difíceis. Anexa àquela oração há, inclusive, indulgência parcial.

Observemos a humildade de São José: frequentemente o encontramos no nicho mais escondido, mais simples, das igrejas, mosteiros e casas de retiro. Numa casa de retiro a que fui uma vez, a imagem dele, desenhada em azulejos, encontrava-se no lugar mais oculto da casa, do lado de fora e atrás de uma árvore. Só com muita sorte ou com um sopro providencial ele poderia ser encontrado.

Mais uma vez, ouçamos São Pedro Julião: “Uma das maiores graças que Deus pode conceder a uma alma é a devoção a São José. É um presente do tesouro das graças de Nosso Senhor; quem deseja se elevar a um grau elevado de santidade deve buscar a intercessão de São José.” “São José, sendo o maior dos santos, é, no entanto, o mais humilde e o mais obscuro de todos. Com isso ele participa singularmente da santidade de Maria e de Jesus.”

Sirva esse pequeno texto em homenagem a São José para que eu obtenha dele um dia a graça de me tornar um verdadeiro devoto seu, liberto da escravidão dos meus pecados e vícios, tornando-me apto a contemplar a sua glória no céu.

Paul Medeiros Krause
 

terça-feira, 17 de março de 2015

HÃ? (COM A PARTE II)


Hermengarda era uma mulher muito inteligente. Ela sempre pensava muito pra falar, e mais ainda pra responder. Escrava da opinião alheia, afeita às gargalhadas, era sempre atenta ao que lhe cairia melhor. Servia-se a torto e a direito do indefectível “Hã?”, não por não entender o que o interlocutor lhe perguntava, mas para escolher, como se escolhe um vestido, a resposta que lhe conviria melhor.

A esse tipo de escolhas supérfluas tinha-se acostumado nossa heroína. Suas vestimentas estavam sempre destinadas a causar sensação, chamar a atenção para o belo desenho das suas formas, bastante curvilíneas, ainda que fosse uma coroa de quarenta anos, com trejeitos de adolescente mais que segura. Tão cheia de si e tão ciosa dos seus contornos, Hermengarda revelava sua falta de conteúdo. Não havia lugar nem espaço para os outros e para indagações de maior vulto no morno recôncavo da sua mente. Orgulhava-se de contar piadas, dramatizava, mas não sabia sorrir. Aliás, seus sorrisos eram de arame, de gesso, de concreto armado, de alguma coisa tensa que enrijecia os músculos da face.

Queria invariavelmente ser o centro das atenções, das conversas, ainda que pelas motivações mais pueris, como a sua seminudez física, sintoma, aliás, da sua seminudez espiritual. Ao exibir o corpo, Hermengarda escondia o vazio, a completa nudez da sua alma. Embora soubesse argumentar, divertia-se em mentir. Fingir era sua especialidade. Fazer tipo era o seu principal passatempo. Vestia-se com as ideias e os assuntos da moda.

Hermengarda era simpática – na verdade, bem menos do que imaginava –, mas daquela simpatia artificial e demagógica que ofende as pessoas de bem. Falava pelos cotovelos e parece mesmo ter sido criada ao léu da sorte, como um cavalo sem rédeas e sem disciplina. Gênio indomável, era capaz de usar os outros e a sua bela aparência para atingir seus objetivos, por mais insignificantes que fossem. A dissimulação era a sua grande arma, o seu grande trunfo, de que poucos se apercebiam. Tão acostumada a mentir aos outros, passou a mentir a si própria...

Hermengarda era infeliz. Tão infeliz, mas tão infeliz, que sequer se dava conta da sua infelicidade. A pirotecnia das frivolidades, o festival das aparências, as exterioridades, as extravagâncias de que este mundo está cheio, as luzes de Natal embriagavam-na, entorpeciam-na, cegavam-na, e, cega, bêbada, cambaleante, grogue, tudo lhe parecia bem. Suas risadas eram gargalhadas de bêbado. Seus comentários sobre os outros não atravessavam a epiderme, a superfície, a zona cutânea. Tinha aversão, ainda que inconsciente, a toda espécie de honestidade e autenticidade. A sinceridade parecia-lhe um muro, um murro, um golpe. A verdade soava-lhe dura, áspera, implacável. Seu mundo era o de holofotes imaginários que a acompanhavam por toda parte. Ela não andava; desfilava.

Mas um dia a coisa começou a mudar...

(COMEÇA A PARTE II)

A princípio, Hermengarda recebia apenas uns suavíssimos toques da graça. Ela começou a perceber Deus lhe falando de múltiplas e variadas formas. Em momentos vários, conversando com pessoas diferentes, parecia-lhe que algumas frases de seus interlocutores se destacavam do discurso, possuíam uma carga de significado mais profunda, vinham de mais longe. É como se aquelas pessoas, inconscientemente, emprestassem a sua boca a Deus, como se Deus se servisse delas para transmitir-lhe conselhos, avisos e mensagens. O mesmo acontecia, às vezes, quando lia algo nalgum livro ou via alguma frase solta nalgum lugar, que, a seu ver, assumia uma importância maior do que a inicialmente prevista. Tais frases ou pensamentos traziam em si dois sentidos: o imediato, querido pelo seu autor, e um mediato, oculto e profundo, sobrenatural e particularíssimo, que somente a ela dizia respeito.

Essa sensação começou a persegui-la. Muitas vezes, emocionava-se ao perceber ou imaginar perceber esse estranho tipo de comunicação, com aparência sobrenatural. Pode-se dizer que havia um princípio de sensibilidade e abertura da sua alma para captar e sentir os orvalhos celestes, as inspirações e afetos, que são o modo ordinário pelo qual Deus fala às almas. Nasciam impulsos de dedicar-se à oração e ao louvor. Surgiam desejos de silêncio, de um pouco de solidão, e de entregar-se totalmente à vontade de Deus.

Começou ela a entender que a vida não é tão divertida quanto parece. Que não é uma passarela. Na verdade, ela, a vida, não é nada divertida. É luta, é guerra, é combate entre dois mundos, no meio de nós, no nosso interior. Um dia, Hermengarda teve de deparar consigo mesma. E o choque, o choque foi brutal...

Parece que primeiro Deus atrai as pessoas a si, concedendo-lhes consolos, fazendo-lhes carícias no espírito. Mas num segundo momento é como se as abandonasse e lhes mostrasse o abismo da sua miséria. Surgem tentações de desespero. Nasce a sensação de que é impossível salvar-se e progredir na vida espiritual. Numa palavra: parece que todo o inferno combate contra aquela alma. Para dizer de uma outra forma: Deus se distancia um pouco da alma e a entrega às suas próprias forças a fim de que ela se conheça.

Pois vinha já Hermengarda frequentando a Igreja e procurando fazer suas orações diárias, pensando mesmo estar ajeitando a sua vida, quando lhe sobreveio o inesperado: o marido pede-lhe o divórcio. Hermengarda sentiu o chão sumir debaixo de seus pés. O mundo pareceu desabar sobre a sua cabeça. Tudo começou a perder sentido. Ela sentiu que não ficava pedra sobre pedra.

Começou então nossa heroína a questionar-se: “Agora que eu comecei a rezar me acontece isso?” “Nesse caso, é melhor não rezar!...” “Maldita hora em que eu inventei de assistir Missa!”

A verdade é que nossa bela personagem amava desordenadamente o marido, com um amor excessivo. Há quem diga que Deus é ciumento. Qualquer princípio de amor excessivo, que tenda ainda que vagamente a uma espécie de idolatria, ele vai cortando nos seus filhos. Talvez nós possamos interpretar os acontecimentos dessa forma. Mas também há outro modo de examinar os fatos.

Quando Hermengarda se casara ainda era uma pessoa mundana. Assim, o seu casamento fora gestado em um ambiente mundano. O seu marido fora escolhido com critérios mundanos. Ela progrediu na vida espiritual, mas seu marido, não. O choque entre dois mundos passou a existir não somente dentro dela, mas dentro da casa dela, embora isso talvez não fosse mais do que um reflexo do que se passava em seu interior. Havia dois mundos em combate dentro do seu lar: a cidade de Deus e a cidade terrestre.

Não quero aqui entrar em todos os detalhes sobre o que ocorreu depois com Hermengarda, mas o fato é que, com perseverança, ela obteve a conversão do marido, ele voltou ao lar, e ela prosseguiu na sua caminhada de fé, sem a doce ilusão de uma vida de delícias, isenta de sofrimentos. Ela continuou, com alegria, a sua vida de lutas, vencendo uma após a outra, e deixou definitivamente a passarela e os holofotes imaginários, caminhando a passos largos em direção à maturidade.

Paul Medeiros Krause
 

sexta-feira, 6 de março de 2015

O DUELO


Contaram-me que, no último dia do mês passado, a Praça Sete transformou-se, por alguns instantes, em um campo de batalha.

Eis o que houve:

Um físico e um advogado se esbarraram. O advogado, pessoa jurídica que era, beirava os dois metros de altura, sequer balançou; a pessoa física caiu* tonta na calçada.

Teve lugar, então, a desconsideração da pessoa jurídica: o físico bradou contra ela graves acusações e adjetivos. De imediato, o advogado retrucou:

-- Que presunção de inocência é essa?! Você obstaculizou o meu direito de ir e vir!

Ambos tinham personalidade.

-- Não és gente, és uma massa falida! -- esbravejou o vetorial varão, que, em seguida, arremessou um direito material contra a cabeça do causídico.

Diante da violência real, o jurisprudente tomou a medida cautelar cabível: afastou-se um pouco, para possibilitar uma ampla defesa. Cuspiu perto do nanico inflamado, agora em vivas chamas:

-- Tu me escarras, ó coisa cheia de vícios redibitórios?!

A turba engrossava. Os transeuntes procuravam conhecer a causa e julgar o mérito da questão.

O patrono, após chamar ao adversário de absolutamente incapaz, se jogou sobre ele.

Houve tamanha ferocidade e velocidade nos golpes subsequentes que nada mais se pôde distinguir.

Finda a batalha, o povo sentenciava: "Empate." Essa era a verdade formal. A verdade real fora bem outra: a pessoa jurídica massacrara o discípulo de Einstein.


MORAL: Nem sempre a pessoa física tem força física.


* Caiu: com aceleração constante, desprezando-se a resistência do ar.


(Texto originariamente publicado no Jornal "Voz Acadêmica", dos estudantes da Faculdade de Direito da UFMG, na edição de fevereiro de 1997)

ERA UMA VEZ DUAS HANS...


que nasceram
irmãs.
Uma chamava-se
Hamma, a outra,
Hanna.

As duas hans
queriam,
entre outros afãs,
se casar.

Mas, só havia
um sapo.
O sapo até
que parecia galã
para um sapo.
Seu nome era Kelsen.

Kelsen amava
outra han,
a Norma.

Norma era afim
de outro sapo, Frederico,
que, como todos os outros
anfíbios machos dali,
passaram daquele brejo para um melhor,
na guerra com os cem Kães.
Os Kães dilaceraram os sapos
e girinos (você sabe o que é verde parado
e vermelho mexendo-se?)

Kelsen sobreviveu
porque, habilíssimo com a funda,
com pedras agudas
perfurava os 'caputs' kaninos.

Naquele brejão,
sobraram
as hans e o Kelsen.

As duas hans irmãs,
diante da hecatombe,
tomaram suas trouxas
e saltaram pelo mundo.

Norma fez terapia
e se casou com Kelsen,
que envelheceu feliz
e comprou um Corsa 16 válvulas.


* Publicado originariamente no Jornal "Voz Acadêmica", dos estudantes da Faculdade de Direito da UFMG, na edição de março de 1996.