terça-feira, 17 de março de 2015

HÃ? (COM A PARTE II)


Hermengarda era uma mulher muito inteligente. Ela sempre pensava muito pra falar, e mais ainda pra responder. Escrava da opinião alheia, afeita às gargalhadas, era sempre atenta ao que lhe cairia melhor. Servia-se a torto e a direito do indefectível “Hã?”, não por não entender o que o interlocutor lhe perguntava, mas para escolher, como se escolhe um vestido, a resposta que lhe conviria melhor.

A esse tipo de escolhas supérfluas tinha-se acostumado nossa heroína. Suas vestimentas estavam sempre destinadas a causar sensação, chamar a atenção para o belo desenho das suas formas, bastante curvilíneas, ainda que fosse uma coroa de quarenta anos, com trejeitos de adolescente mais que segura. Tão cheia de si e tão ciosa dos seus contornos, Hermengarda revelava sua falta de conteúdo. Não havia lugar nem espaço para os outros e para indagações de maior vulto no morno recôncavo da sua mente. Orgulhava-se de contar piadas, dramatizava, mas não sabia sorrir. Aliás, seus sorrisos eram de arame, de gesso, de concreto armado, de alguma coisa tensa que enrijecia os músculos da face.

Queria invariavelmente ser o centro das atenções, das conversas, ainda que pelas motivações mais pueris, como a sua seminudez física, sintoma, aliás, da sua seminudez espiritual. Ao exibir o corpo, Hermengarda escondia o vazio, a completa nudez da sua alma. Embora soubesse argumentar, divertia-se em mentir. Fingir era sua especialidade. Fazer tipo era o seu principal passatempo. Vestia-se com as ideias e os assuntos da moda.

Hermengarda era simpática – na verdade, bem menos do que imaginava –, mas daquela simpatia artificial e demagógica que ofende as pessoas de bem. Falava pelos cotovelos e parece mesmo ter sido criada ao léu da sorte, como um cavalo sem rédeas e sem disciplina. Gênio indomável, era capaz de usar os outros e a sua bela aparência para atingir seus objetivos, por mais insignificantes que fossem. A dissimulação era a sua grande arma, o seu grande trunfo, de que poucos se apercebiam. Tão acostumada a mentir aos outros, passou a mentir a si própria...

Hermengarda era infeliz. Tão infeliz, mas tão infeliz, que sequer se dava conta da sua infelicidade. A pirotecnia das frivolidades, o festival das aparências, as exterioridades, as extravagâncias de que este mundo está cheio, as luzes de Natal embriagavam-na, entorpeciam-na, cegavam-na, e, cega, bêbada, cambaleante, grogue, tudo lhe parecia bem. Suas risadas eram gargalhadas de bêbado. Seus comentários sobre os outros não atravessavam a epiderme, a superfície, a zona cutânea. Tinha aversão, ainda que inconsciente, a toda espécie de honestidade e autenticidade. A sinceridade parecia-lhe um muro, um murro, um golpe. A verdade soava-lhe dura, áspera, implacável. Seu mundo era o de holofotes imaginários que a acompanhavam por toda parte. Ela não andava; desfilava.

Mas um dia a coisa começou a mudar...

(COMEÇA A PARTE II)

A princípio, Hermengarda recebia apenas uns suavíssimos toques da graça. Ela começou a perceber Deus lhe falando de múltiplas e variadas formas. Em momentos vários, conversando com pessoas diferentes, parecia-lhe que algumas frases de seus interlocutores se destacavam do discurso, possuíam uma carga de significado mais profunda, vinham de mais longe. É como se aquelas pessoas, inconscientemente, emprestassem a sua boca a Deus, como se Deus se servisse delas para transmitir-lhe conselhos, avisos e mensagens. O mesmo acontecia, às vezes, quando lia algo nalgum livro ou via alguma frase solta nalgum lugar, que, a seu ver, assumia uma importância maior do que a inicialmente prevista. Tais frases ou pensamentos traziam em si dois sentidos: o imediato, querido pelo seu autor, e um mediato, oculto e profundo, sobrenatural e particularíssimo, que somente a ela dizia respeito.

Essa sensação começou a persegui-la. Muitas vezes, emocionava-se ao perceber ou imaginar perceber esse estranho tipo de comunicação, com aparência sobrenatural. Pode-se dizer que havia um princípio de sensibilidade e abertura da sua alma para captar e sentir os orvalhos celestes, as inspirações e afetos, que são o modo ordinário pelo qual Deus fala às almas. Nasciam impulsos de dedicar-se à oração e ao louvor. Surgiam desejos de silêncio, de um pouco de solidão, e de entregar-se totalmente à vontade de Deus.

Começou ela a entender que a vida não é tão divertida quanto parece. Que não é uma passarela. Na verdade, ela, a vida, não é nada divertida. É luta, é guerra, é combate entre dois mundos, no meio de nós, no nosso interior. Um dia, Hermengarda teve de deparar consigo mesma. E o choque, o choque foi brutal...

Parece que primeiro Deus atrai as pessoas a si, concedendo-lhes consolos, fazendo-lhes carícias no espírito. Mas num segundo momento é como se as abandonasse e lhes mostrasse o abismo da sua miséria. Surgem tentações de desespero. Nasce a sensação de que é impossível salvar-se e progredir na vida espiritual. Numa palavra: parece que todo o inferno combate contra aquela alma. Para dizer de uma outra forma: Deus se distancia um pouco da alma e a entrega às suas próprias forças a fim de que ela se conheça.

Pois vinha já Hermengarda frequentando a Igreja e procurando fazer suas orações diárias, pensando mesmo estar ajeitando a sua vida, quando lhe sobreveio o inesperado: o marido pede-lhe o divórcio. Hermengarda sentiu o chão sumir debaixo de seus pés. O mundo pareceu desabar sobre a sua cabeça. Tudo começou a perder sentido. Ela sentiu que não ficava pedra sobre pedra.

Começou então nossa heroína a questionar-se: “Agora que eu comecei a rezar me acontece isso?” “Nesse caso, é melhor não rezar!...” “Maldita hora em que eu inventei de assistir Missa!”

A verdade é que nossa bela personagem amava desordenadamente o marido, com um amor excessivo. Há quem diga que Deus é ciumento. Qualquer princípio de amor excessivo, que tenda ainda que vagamente a uma espécie de idolatria, ele vai cortando nos seus filhos. Talvez nós possamos interpretar os acontecimentos dessa forma. Mas também há outro modo de examinar os fatos.

Quando Hermengarda se casara ainda era uma pessoa mundana. Assim, o seu casamento fora gestado em um ambiente mundano. O seu marido fora escolhido com critérios mundanos. Ela progrediu na vida espiritual, mas seu marido, não. O choque entre dois mundos passou a existir não somente dentro dela, mas dentro da casa dela, embora isso talvez não fosse mais do que um reflexo do que se passava em seu interior. Havia dois mundos em combate dentro do seu lar: a cidade de Deus e a cidade terrestre.

Não quero aqui entrar em todos os detalhes sobre o que ocorreu depois com Hermengarda, mas o fato é que, com perseverança, ela obteve a conversão do marido, ele voltou ao lar, e ela prosseguiu na sua caminhada de fé, sem a doce ilusão de uma vida de delícias, isenta de sofrimentos. Ela continuou, com alegria, a sua vida de lutas, vencendo uma após a outra, e deixou definitivamente a passarela e os holofotes imaginários, caminhando a passos largos em direção à maturidade.

Paul Medeiros Krause
 

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