“Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver?” Com essa citação de Alexandre Herculano, Gustavo Corção abre as suas “Confissões”, o seu primeiro livro – “A descoberta do outro” –, dando-nos uma das mais belas páginas inaugurais da literatura portuguesa. A primeira edição das “Confissões” de Corção, saudadas entusiasticamente pela crítica, esgotou-se em quatro semanas e meia.
Mas a imprescindível obra de
Corção, o seu testamento, está há mais de trinta anos amarrada ao seu próprio
cadáver. O que não é prejuízo para ele, mas para nós que deixamos de conhecer-lhe
o gênio, de desfrutar do seu convívio póstumo.
Na última página de “O desconcerto
do mundo”, Corção cita uma passagem do Eclesiastes, depois de ter esclarecido ser
este o livro de cabeceira de Machado: “escrever livros é um trabalho sem fim,
que cansa o corpo”. Gustavo fez a sua parte; exercitou a pena, cansou o corpo,
extenuou a mente. Mas o que ele tem a dizer-nos está hoje sepultado no esquecimento,
enterrado na obscuridade do passado.
Com exceção de “Lições de abismo”
– em edição com gravuras de Oswaldo Goeldi –, seu único romance e sua obra mais
conhecida, traduzido até para o polonês e premiado pela Unesco em 1954, e de
“Gustavo Corção – Melhores crônicas” (seleção e prefácio de Luiz Paulo Horta,
editora Global, 2010), que se podem adquirir ainda em alguma boa livraria, os
excelentes livros do escritor carioca são encontrados apenas em sebos, mesmo
assim, com certa dificuldade.
Contudo, uma boa introdução à
obra e ao pensamento do escritor são as “Lições de Gustavo Corção”, de Marta
Braga, editora Quadrante, 2010.
E se “A descoberta do outro” são
as suas “Confissões”, “Dois amores – duas cidades” pode bem ser considerado a
sua “Cidade de Deus”, obra enciclopédica que desenvolve a doutrina dos dois
amores de Santo Agostinho – e, tal como a do bispo de Hipona que a inspira,
cume e síntese do seu trabalho –, demonstrando a existência de duas
civilizações, a do homem-interior e a do homem-exterior, fundadas por dois
amores, o amor a Deus, até o desprezo de si, e o amor a si, até o desprezo de
Deus. É esmiuçada a gênese nominalista da modernidade, no ambiente da
escolástica decadente.
Pode ser que algum leitor torça o
nariz ao ouvir falar de Gustavo Corção. Mas isso se deve ao fato de que desaprendemos
a pensar, isto é, acostumamo-nos a um pensar uniforme, homogêneo, pasteurizado,
instantâneo. Pensar dá trabalho. A irracionalidade é também uma zona de
conforto. Alguns argumentos de Corção doem. Machucam. São virulentos. Ferem
nosso brio. São tapas ou safanões de pai. Gustavo não entrava numa briga pra
perder. Esmerava-se. Caprichava no golpe e na defesa do que lhe parecia
verdadeiro.
Sou inclinado a dizer que Gustavo
Corção mete medo. Não é qualquer um que se atreve a lidar com ele. Embora ostente
singular perfeição na forma e no conteúdo, causa também incômodo. Desinstala-nos,
desaloja-nos; derruba-nos. É impossível lê-lo e continuar o mesmo, permanecer
impassível. Vai-se amá-lo ou odiá-lo. Creio, porém, que sempre suscitará
respeito. Todos hão de admirar-lhe a força da erudição, a agudeza da
inteligência, a clareza dos conceitos e a finura dos raciocínios. Ele é um
gigante que não cabe sob o cobertor do esquecimento. Um braço, um pé, a cabeça,
uma mão vão ficar de fora. Mais dia menos dia alguém vai deparar com uma perna à
mostra e descobrir o resto do corpo. Vai acusar o golpe, vai sentir o impacto.
Sim, desde que Corção foi
enterrado, nossa nação ficou menos inteligente, e o pensamento, menos aguerrido.
Mas eu sei que em alguma parte, em alguma estante, ele nos espera. Ele anunciou
isso em “Três alqueires e uma vaca”. Falou do leitor dos seus sonhos. Do livro
que cada um quis ter escrito, do livro que foi escrito para cada um. Disse que
alguns deles são como uma carta, sim, uma carta de resposta. O destinatário,
oculto para o autor da mensagem, um dia se apercebe disso. Diz Corção que os
momentos mais decisivos para cada homem, para a humanidade, são expectativas de
uma resposta. Contudo, certas introduções, certas preparações, são necessárias
para o máximo proveito do encontro com o livro, para a chegada da resposta. Tal
encontro, acrescenta ele, não constitui tão-somente a simples interseção das
trajetórias mecânicas do leitor e do livro, pois este é um objeto situado no
mundo do espírito. Há uma espécie de percurso, de rito, de liturgia. Passos, recuos,
extravios até a chegada da carta.
Então, acontecendo o encontro, o
esbarro, uma profunda reorganização se opera em nossa vida. A resposta devolve-nos
a nós mesmos; retifica nossos nervos e nossas ideias em conformidade com o que somos.
Faz-nos ser o que somos. É o que eu desejo que aconteça com o seu encontro com Gustavo
Corção.
Paul Medeiros Krause
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