segunda-feira, 6 de julho de 2015

GUSTAVO CORÇÃO




 “Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver?” Com essa citação de Alexandre Herculano, Gustavo Corção abre as suas “Confissões”, o seu primeiro livro – “A descoberta do outro” –, dando-nos uma das mais belas páginas inaugurais da literatura portuguesa. A primeira edição das “Confissões” de Corção, saudadas entusiasticamente pela crítica, esgotou-se em quatro semanas e meia.

Mas a imprescindível obra de Corção, o seu testamento, está há mais de trinta anos amarrada ao seu próprio cadáver. O que não é prejuízo para ele, mas para nós que deixamos de conhecer-lhe o gênio, de desfrutar do seu convívio póstumo.

Na última página de “O desconcerto do mundo”, Corção cita uma passagem do Eclesiastes, depois de ter esclarecido ser este o livro de cabeceira de Machado: “escrever livros é um trabalho sem fim, que cansa o corpo”. Gustavo fez a sua parte; exercitou a pena, cansou o corpo, extenuou a mente. Mas o que ele tem a dizer-nos está hoje sepultado no esquecimento, enterrado na obscuridade do passado.

Com exceção de “Lições de abismo” – em edição com gravuras de Oswaldo Goeldi –, seu único romance e sua obra mais conhecida, traduzido até para o polonês e premiado pela Unesco em 1954, e de “Gustavo Corção – Melhores crônicas” (seleção e prefácio de Luiz Paulo Horta, editora Global, 2010), que se podem adquirir ainda em alguma boa livraria, os excelentes livros do escritor carioca são encontrados apenas em sebos, mesmo assim, com certa dificuldade.

Contudo, uma boa introdução à obra e ao pensamento do escritor são as “Lições de Gustavo Corção”, de Marta Braga, editora Quadrante, 2010.

E se “A descoberta do outro” são as suas “Confissões”, “Dois amores – duas cidades” pode bem ser considerado a sua “Cidade de Deus”, obra enciclopédica que desenvolve a doutrina dos dois amores de Santo Agostinho – e, tal como a do bispo de Hipona que a inspira, cume e síntese do seu trabalho –, demonstrando a existência de duas civilizações, a do homem-interior e a do homem-exterior, fundadas por dois amores, o amor a Deus, até o desprezo de si, e o amor a si, até o desprezo de Deus. É esmiuçada a gênese nominalista da modernidade, no ambiente da escolástica decadente.

Pode ser que algum leitor torça o nariz ao ouvir falar de Gustavo Corção. Mas isso se deve ao fato de que desaprendemos a pensar, isto é, acostumamo-nos a um pensar uniforme, homogêneo, pasteurizado, instantâneo. Pensar dá trabalho. A irracionalidade é também uma zona de conforto. Alguns argumentos de Corção doem. Machucam. São virulentos. Ferem nosso brio. São tapas ou safanões de pai. Gustavo não entrava numa briga pra perder. Esmerava-se. Caprichava no golpe e na defesa do que lhe parecia verdadeiro.

Sou inclinado a dizer que Gustavo Corção mete medo. Não é qualquer um que se atreve a lidar com ele. Embora ostente singular perfeição na forma e no conteúdo, causa também incômodo. Desinstala-nos, desaloja-nos; derruba-nos. É impossível lê-lo e continuar o mesmo, permanecer impassível. Vai-se amá-lo ou odiá-lo. Creio, porém, que sempre suscitará respeito. Todos hão de admirar-lhe a força da erudição, a agudeza da inteligência, a clareza dos conceitos e a finura dos raciocínios. Ele é um gigante que não cabe sob o cobertor do esquecimento. Um braço, um pé, a cabeça, uma mão vão ficar de fora. Mais dia menos dia alguém vai deparar com uma perna à mostra e descobrir o resto do corpo. Vai acusar o golpe, vai sentir o impacto.

Sim, desde que Corção foi enterrado, nossa nação ficou menos inteligente, e o pensamento, menos aguerrido. Mas eu sei que em alguma parte, em alguma estante, ele nos espera. Ele anunciou isso em “Três alqueires e uma vaca”. Falou do leitor dos seus sonhos. Do livro que cada um quis ter escrito, do livro que foi escrito para cada um. Disse que alguns deles são como uma carta, sim, uma carta de resposta. O destinatário, oculto para o autor da mensagem, um dia se apercebe disso. Diz Corção que os momentos mais decisivos para cada homem, para a humanidade, são expectativas de uma resposta. Contudo, certas introduções, certas preparações, são necessárias para o máximo proveito do encontro com o livro, para a chegada da resposta. Tal encontro, acrescenta ele, não constitui tão-somente a simples interseção das trajetórias mecânicas do leitor e do livro, pois este é um objeto situado no mundo do espírito. Há uma espécie de percurso, de rito, de liturgia. Passos, recuos, extravios até a chegada da carta.

Então, acontecendo o encontro, o esbarro, uma profunda reorganização se opera em nossa vida. A resposta devolve-nos a nós mesmos; retifica nossos nervos e nossas ideias em conformidade com o que somos. Faz-nos ser o que somos. É o que eu desejo que aconteça com o seu encontro com Gustavo Corção.
 

Paul Medeiros Krause
 
 
NOTA: Gustavo Corção Braga faleceu no Rio de Janeiro, sua cidade natal, em 6 de julho de 1978, portanto, há 37 anos. Sua morte foi amplamente comentada pelos jornais.


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