domingo, 22 de janeiro de 2017

BREVE MÉTODO PARA CONHECER A VONTADE DE DEUS (COMPLETO)

 
 
 
 
 
"TRATADO DO AMOR DE DEUS"
 
LIVRO OITAVO
 
CAPÍTULO XIV
 
Breve método para conhecer a vontade de Deus
 
 
São Basílio diz que a vontade de Deus nos é manifestada por suas ordens ou mandamentos, e que então nada há que deliberar; porque se deve fazer com simplicidade aquilo que é ordenado; mas que, quanto ao mais, na nossa liberdade está o escolhermos a nosso gosto o que bem nos parecer, embora não se deva fazer tudo o que é lícito, mas só o que é conveniente; e que, enfim, para bem discernir o que é conveniente, deve-se ouvir o conselho do prudente pai espiritual.
 
Mas, Teótimo, advirto-vos de uma tentação aborrecida que múltiplas vezes sobrevém às almas que têm grande desejo de em tudo seguir aquilo que é mais conforme à vontade de Deus; pois em todas as ocorrências o inimigo as põe em dúvida sobre se é a vontade de Deus que elas façam uma coisa de preferência a outra; como, por exemplo, se é vontade de Deus que elas comam com o amigo ou não comam, que usem roupas cinzentas ou pretas, que jejuem na sexta-feira ou no sábado, que vão à recreação ou que dela se abstenham, coisa em que elas consomem muito tempo; e, enquanto se ocupam e embaraçam em querer discernir o que é melhor, perdem inutilmente o tempo de fazer vários bens, cuja execução daria mais glória a Deus do que poderia dá-la o discernimento do bom e do melhor em que elas se distraíram.
 
Não se costuma pesar a moeda miúda, mas somente as moedas de importância. O comércio seria por demais aborrecido e consumiria muito tempo se fosse preciso pesar os soldos, os ‘liards’, os dinheiros e as pitas*. Assim não se devem pesar toda sorte de pequeninas ações para saber se elas valem mais do que outras. Há mesmo muita superstição em querer fazer esse exame: porquanto, a que propósito se há de pôr em dificuldade se é melhor ouvir missa numa igreja do que noutra, fiar do que coser, dar esmola a um homem do que a uma mulher? Não é servir bem um amo empregar tanto tempo em considerar o que se deve fazer quanto em fazer o que é necessário. Cumpre medirmos a nossa atenção pela importância daquilo que empreendemos: seria um cuidado desregrado dar-se tanto trabalho para deliberar sobre uma viagem de um dia a fazer, como sobre uma de trezentas ou quatrocentas léguas.
 
A escolha da vocação, o projeto de algum negócio de longa consequência, de alguma obra de longo fôlego, ou de alguma despesa muito grande, a mudança de residência, a escolha de conversas, e tais coisas semelhantes, merecem que pensemos seriamente sobre o que é mais conforme à vontade divina. Mas nas pequenas ações diárias, em que a própria falta não é nem de consequência nem irreparável, que necessidade há de fazer de atarefado, de atento e de embaraçado em fazer consultas importunas? A que fim me hei de pôr em despesas para saber se Deus gosta mais de que eu reze o rosário ou o ofício de Nossa Senhora, já que não haveria tanta diferença entre um e outro que para isso seja preciso fazer grande investigação? que eu vá ao hospital visitar os doentes de preferência a ir às vésperas, que eu vá ao sermão de preferência a ir a uma igreja onde há indulgência? Ordinariamente não há numa dessas coisas mais do que noutra nada tão aparentemente notável, que por isso se deva entrar em grande deliberação. Deve-se andar com toda boa fé e sem sutileza em tais ocasiões; e, como diz São Basílio, fazer livremente o que bem nos parecer, para não cansarmos o espírito, não perdermos o tempo e não nos pormos em perigo de inquietação, escrúpulo e superstição. Ora, eu aqui entendo sempre o caso em que não há grande desproporção entre uma obra e outra, e não se encontra circunstância considerável de uma parte mais do que da outra.
 
Nas próprias coisas de consequência, deve-se ser humilde, e não pensar achar a vontade de Deus à força de exame e de sutileza de raciocínio. Mas, depois de havermos pedido a luz do Espírito Santo, de termos aplicado a nossa consideração à indagação do seu beneplácito, tomado o conselho do nosso diretor e, se for o caso, de outras duas ou três pessoas espirituais, devemo-nos resolver e determinar em nome de Deus, e não devemos depois pôr em dúvida a nossa escolha, mas cultivá-la e sustentá-la devota, tranquila e constantemente. E embora as dificuldades, tentações e diversidades de sucessos que se encontrem no progresso da execução de nosso desígnio possam suscitar-nos alguma desconfiança de não havermos escolhido bem, devemos todavia permanecer firmes, e não olhar a tudo isso, mas considerar que, se houvéssemos feito outra escolha, talvez tivéssemos achado cem vezes pior: além de que não sabemos se Deus quer que sejamos exercitados na consolação ou na tribulação, na paz ou na guerra. Estando a resolução santamente tomada, nunca se deve duvidar da santidade da execução: porquanto, se ela não depende de nós, não pode falhar; fazer diversamente é uma prova de grande amor-próprio ou de infância, fraqueza ou parvoíce de espírito.
 
 
* Pitas, moedinha de cobre, cunhada em Poitiers, latim Picavum, valendo um quarto de um dinheiro.
 
 
[Este é o capítulo completo extraído do livro "Tratado do amor de Deus", que publico em honra do grande São Francisco de Sales, doutor da igreja, bispo e príncipe de Genebra, na proximidade da sua festa, comemorada em 24 de janeiro.]
 
 

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