Vou falar de Alceu Amoroso Lima, mas o assunto é ainda Guimarães Rosa. Eis o que eu queria dizer: — para mim, o amigo é o grande acontecimento. (Bem me lembro daquela segunda-feira. Entro na redação e vejo o Franklin de Oliveira. Vagava por entre mesas e cadeiras, e tão órfão de Guimarães Rosa.) Há cinco ou seis anos, resolvi ser amigo do dr. Alceu. Era dezembro. No dia 24, ligo para ele. Imaginei que, na espera de Natal, um católico puro há de estar aberto para o mundo.
Comecei assim: — “Dr. Alceu, aqui fala o Nelson Rodrigues. Como vai? Vai bem?”. Não havia nenhuma convivência entre nós. Mas ele respondeu, vivamente: — “Ah, Nelson, tenho pensado tanto em você! Agora mesmo, estava rezando por você”. Pensando em mim, rezando por mim. Vou adiante: — “Dr. Alceu, estou-lhe telefonando para desejar todas as felicidades, a si e aos seus” etc. etc. etc. Por um momento, tive vontade de contar-lhe o seguinte: — “Dr. Alceu, quando eu era criança, o ‘Tico-Tico’ publicava um presépio para armar. O senhor sabe que eu recortava as figurinhas e colava em papelão?”.
Todavia, não falei do presépio. Um ano depois, no mesmo 24 de dezembro, disco novamente. E o dr. Alceu responde: — “Ah, Nelson, acabei de rezar por você”. (Ah, não se esquecia de mim nas suas orações.) Mais uma vez, não contei que em criança armava os presépios do “Tico-Tico’. E, assim, Natal após Natal, não lhe faltei com o meu sofrido telefonema.
Eis o que eu pensava: — um católico, como o dr. Amoroso Lima, há de ter Deus enterrado em si como um sino. Ele havia de imaginar que eu corria, arquejante, atrás de um amigo, eternamente atrás de um amigo. E, no entanto, eu sentia, com uma nitidez cruel, inapelável, que o dr. Alceu rezava por mim e não era meu amigo. Simplesmente, não era meu amigo.
Até que, um dia, converso com uma senhora que acabava de chegar de Roma. Entrara no Vaticano e fora recebida pelo papa. Na hora de se despedir, o Santo padre baixa a voz e diz, súplice: — “Reze por mim”. Era um papa, a mendigar uma oração. Tremendo de beleza, a pobre senhora saiu dali como se fugisse.
No seguinte Natal, vou ligar para o dr. Alceu. Estou cada vez mais convencido de que o amigo é um momento de eternidade. Antes de discar, passo um bom quarto de hora sonhando diante do telefone. Eu queria ter, com o dr. Alceu, uma conversa de lealdade total. Eis o que imaginava dizer lhe: — “Dr. Alceu, reze menos por mim. Se quiser, não reze nada. Mas seja meu amigo. Apenas isso: — meu amigo. E, se insiste em rezar, vamos fazer uma permuta: o senhor reza por mim e eu rezo por si”.
Daria tudo para ver o dr. Alceu mendigando as minhas orações, com a humildade de um papa. Imaginei o velho católico a suplicar, do fundo do seu desespero: — “Nelson, reze por mim. Eu preciso ser salvo. É a minha salvação que está em jogo”. Se ele falasse assim, trêmulo de pavor, eu responderia: — “Dr. Alceu, vou começar agora mesmo. Não desligue. Quero que o senhor ouça a minha oração”. E assim eu salvaria o dr. Alceu Amoroso Lima, e seríamos amigos eternamente.
Eu não rezo. Sou cristão e não rezo. A última vez em que rezei foi na morte do meu irmão Roberto. Na morte, não: ele ainda agonizava e rezei para salvá-lo. Quando o vi morto, fiz, a mim mesmo, o juramento ressentido: — não rezar mais, nunca mais. (Roberto foi assassinado; e, morto, era belo como os suicidas.) Mas rezaria pelo dr. Alceu se ele implorasse uma oração, assim como um ceguinho pede uma moeda.
Bem me lembro do nosso último 24 de dezembro. Ouço a voz do dr. Alceu: — “Alô?”. Estou imaginando: — “Vai repetir tudo, igualzinho como da outra vez”. Digo: — “Dr. Alceu, é o Nelson Rodrigues. Como vai essa figura?”. Foi de uma larga e cálida efusão: — “Ah, Nelson, acabei de rezar por você”. Tomo um baque. Ele insiste: — “Tenho pedido muito por você”. Aproveito uma pausa e dou o meu recado: — “Vim desejar-lhe todas as felicidades etc. etc.”.
(E eu queria pingar, como no pires de um cego, a moeda da minha oração.) Baixa em mim o tédio: começo a crer que o amigo é uma impossibilidade. A conversa continuou e chegava a ser irreal, quase um pesadelo humorístico. Subitamente, ele suspira: — “Ah, Nelson, você aí nessa lama!”. Exatamente: — lama. Começo a ter medo do resto. Dr. Alceu dizia “lama” familiarmente, como se falasse de uma tia minha, bem idosa e até estimável. Tive a ideia de responder-lhe: — “Minha lama vai bem. E a sua, dr. Alceu?”.
Acabei com aquilo sumariamente: — “Até logo, até logo. Passar bem”. Desliguei e confesso: — com um desgosto do Natal e, até, um tédio retrospectivo do presépio do “Tico-Tico”. Nunca mais telefonei, nunca mais. Mas, ao relembrar o episódio, imagino um mundo em que as senhoras se cumprimentassem assim: — “Como tem passado a sua lama?”. Eis o que o dr. Alceu, na sua imodéstia de santo, não percebe — qualquer um tem seus íntimos pântanos, sim, pântanos adormecidos. É preciso não despertá-los. Mas certos acontecimentos acordam a lama do seu negro sono. Quando isso acontece, a alma começa a exalar o tifo, a malária, e a paisagem apodrece.
Justamente, a morte de Guimarães Rosa tocou meu íntimo e inconfesso pântano. Vivo, ele nos agredia e humilhava com a sua monumental presença literária. Certa vez, ouvi o Otto Lara Resende dizer, na TV Globo: — “O genial João Guimarães Rosa”. Além de chamá-lo “genial”, ainda lhe punha, por extenso, o nome. Eu estava em casa. Detestei o Otto e pensei, desfeiteado: — “Uma besta, esse Otto”. No dia seguinte estava eu dizendo, não sei a quem, que o “Grande Sertão” tinha muito de gratuito, de incomunicável; e a linguagem do autor, que ninguém entendia, era uma audição para surdos. Fiquei, por uns dias, ressentido com o Otto: — “Nunca me chamou de gênio”, era o meu lamento.
E, súbito, num domingo, morria Guimarães Rosa. A notícia deu-me um alívio, uma brusca e vil euforia. É fácil admirar, sem ressentimento, um gênio morto. Já tínhamos um Machado de Assis. Guimarães Rosa seria outro Machado de Assis. Claro que os demais continuavam vivíssimos, atropelando. Mas esses não fundaram uma língua, nem escreveram “A Terceira Margem do Rio” (que o Helio Pellegrino declamou para mim, ao telefone).
No dia seguinte, Guimarães Rosa tinha uma imprensa de chefe de Estado assassinado. Vocês se lembram quando um tiro arrancou o queixo forte, vital, de Kennedy? Pois Guimarães Rosa subiu às manchetes como o presidente fuzilado dos Estados Unidos. Pela primeira vez um escritor aparecia em oito colunas, nas primeiras páginas. No princípio do século, Euclides da Cunha também teve a mesma glória impressa. Mas não era o autor de “Os Sertões”, não era o bárbaro estilista. Para ser manchete, Euclides teve de ser varado de balas.
Há qualquer coisa de árido, ou de vazio, ou de humilhante, na morte natural do grande homem. Pois Guimarães Rosa, com um puro e convencional enfarte, mereceu a promoção frenética das tragédias de sangue. Repito: — pela primeira vez fez-se crítica literária nas manchetes. Os meus amigos penduravam-se no telefone. O Helio Pellegrino, na véspera, restritivo, realizou uma fulminante revisão crítica. Relia o Guimarães Rosa e tremia de beleza. Ligou para o Mário Pedrosa para arrastá-lo na mesma admiração. Mas o Mário resmungou: — “É o novo Coelho Neto!”. Muito antes, eu ouvira do Carlos Heitor Cony o mesmo berro: — “É o novo Coelho Neto!”. Quanto a mim, fui ao velório na Academia. Entro e paro ante a indignidade dos círios elétricos.
NELSON RODRIGUES: Crônica publicada no livro “O Óbvio Ululante”, editora Companhia das Letras.
Muito boa a crônica! Quantos Nelson Rodrigues por aí buscam uma amizade verdadeira e não sabem construí-la!
ResponderExcluirÉ preciso ter a sensibilidade, o senso crítico e a competência do autor para expressar suas tentativas frustradas!
Muito obrigado pelo comentário, Maria!
ExcluirÉ melancólico constatar um talento tão particular para a literatura ser desperdiçado devido a um invencível rancor. Ferido com a morte de seu irmão, ele dá as costas a DEUS. Obstina-se em sua soberba. Um bom católico não deixaria de rezar, pelo contrário, rezaria ainda mais e melhor, suplicando a salvação daquela alma querida. O talento de Nelson Rodrigues é inegável, mas o que fez ele fez com esse dom? Não hesito em afirmar que o enterrou, como está descrito na parábola. E o enterrou em um terreno malsão, cultivado de impurezas, rancores, maldades, perversões. Que fruto se pode colher daí? Sua necessidade de um amigo - que, pode-se deduzir, nunca encontrou - o fez buscar Alceu Amoroso Lima. Mas o que Rodrigues aproveitou deste potencial amigo? Aparentemente, nada. Não acredito que ele fosse rezar por Alceu, caso este o pedisse. Não se vê humildade, pois ele espera uma resposta premeditada. Não se vê respeito, pois ele expõe uma conversa íntima publicamente, depreciando enormemente o interlocutor, sem que este possa se defender. Vê-se, mais uma vez, um grande rancor, pois ele não ouviu o que esperava, e não suportou o que ouviu. Não suportou ser desmascarado em sua opção pelo doentio. É uma pena que Nelson Rodrigues não tenha aproveitado desta grande oportunidade de redenção, que DEUS mesmo lhe ofereceu. Preferiu a lama de suas obsessões. Enraizou-se nelas. Acabou por enxovalhar seu virtuosismo literário, à custa de crueldade e perversão, que atendem tão bem à cupidez dos editores. Sem dúvida, ele deve ter vendido aos milhares seus vulgares folhetins. Conquistou o reconhecimento dos homens, neste mundo, mas como terá se apresentado diante de DEUS?
ResponderExcluirCaro Teófilo, obrigado por seu comentário. Não vejo o texto por esse prisma. Acho que o artigo é bom e pode levar-nos a refletir se estamos acolhendo bem as pessoas que querem aproximar-se da Igreja. Se elas sentem em nós uma amizade hipócrita, artificial, sem raízes, poderemos perder almas que Jesus Cristo já tinha conquistado com seu sangue. Parece-me que Cristo demonstrou um interesse, uma amizade sincera, pela Samaritana. Acho que a reflexão é boa. Julguemos os atos, não condenemos as pessoas. Odiemos o pecado, não os pecadores.
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