O
livro do Gênesis, que, como se sabe, é divinamente inspirado mas não deve ser
interpretado ao pé da letra, relata que o demônio assumiu a forma de serpente
para tentar nossos primeiros pais. Quando o Espírito Santo utiliza uma figura
não devemos pensar que o faz à-toa, aleatoriamente. Por que não se serviu o divino
autor da imagem do gambá, já que se conta que o diabo costuma anunciar sua
presença por um terrível cheiro de podridão e de enxofre?
Cristo
no Evangelho, em uma das suas parábolas, diz que o reino de Deus é semelhante a
um grão de mostarda, que, sendo a menor das hortaliças, quando cresce se torna
uma grande árvore em que os pássaros se abrigam.
O
pássaro quase não toca a terra. Quando o faz, por necessidade, encosta nela
tão-somente os pés, isto é, uma parte mínima do seu corpo. Quando não estão
voando, as aves quase sempre estão nas árvores. Nem mesmo os seus ninhos têm
contato com o solo, ficando protegidos e suspensos entre os galhos. Em grande
parte do tempo, o pássaro está no ar, embora seja mais pesado que o ar. Assim
também os cidadãos da cidade celeste, os filhos do reino, embora em si mesmos sejam
pesados e indignos das moradas eternas, pelas asas da graça podem alcançar o céu.
E os seus ninhos estão protegidos entre os ramos e a folhagem da Santa Madre Igreja.
A
serpente, ao revés, é toda mundana. Arrasta-se no chão desde o começo da cabeça
até o final da cauda, com todo o seu corpo. Deve ser por isto que ela não tem pés
ou patas: porque quer sempre ter maior contato com o mundo. Seus ninhos também
estão no solo. O horizonte da serpente e dos seus filhotes é o rasteiro, o chão,
e, mesmo que não queiram, entra-lhes o pó da terra pelas narinas e pela boca. Acredito
que a serpente, com os seus olhos laterais, nem sequer é capaz de olhar para o
céu.
Para
dizer tudo: a serpente é o animal materialista por excelência. Arrasta-se e enrosca-se
em coisas palpáveis, ao passo que as aves estão suspensas em gases invisíveis,
no ar. Um observador menos atento poderia dizer que as aves estão suspensas no
nada. Mas isso é impossível. Sem o ar, as aves não poderiam voar.
Como
a linguagem do Gênesis é figurada e Santo Agostinho diz na Cidade de Deus que
algumas passagens da Sagrada Escritura comportam várias interpretações lícitas,
estou pessoalmente convencido de que a serpente, a primeira e maior cientificista,
na verdade, entregou a Eva não uma maçã, mas sim a primeira edição de O
capital.
Depois
de Memórias do Subsolo, de Dostoiévski, é difícil compreender como o marxismo
sobreviveu. Difícil, mas não impossível, pois o próprio Dostoiévski explica: “o
homem é a tal ponto afeiçoado ao seu sistema e à dedução abstrata que está
pronto a deturpar intencionalmente a verdade, a descrer de seus olhos e seus
ouvidos apenas para justificar a sua lógica”.
Em
menos de uma página, talvez a mais formidável de todo o livro, Dostoiévski
expõe à zombaria pública, à humilhação universal, os que pretendem construir o
paraíso na terra, um palácio de cristal, com receitinhas de bolo científicas ou
filosóficas. Profundo conhecedor da natureza humana, especialmente depois de
ter ido ao inferno e voltado, sua crítica ao determinismo e ao cientificismo é
mordaz e fatal:
“Mais
ainda: então, dizeis, a própria ciência há de ensinar ao homem (embora isto
seja, a meu ver, um luxo) que, na realidade, ele não tem vontade nem caprichos,
e que nunca os teve, e que ele próprio não passa de tecla de piano ou de um
pedal de órgão; e que, antes de mais nada, existem no mundo as leis da
natureza, de modo que tudo o que ele faz não acontece por sua vontade, mas
espontaneamente, de acordo com as leis da natureza. Consequentemente, basta
descobrir essas leis e o homem não responderá mais pelas suas ações, e sua vida
se tornará extremamente fácil. Todos os atos humanos serão calculados, está
claro, de acordo com essas leis, matematicamente, como uma espécie de tábua de
logaritmos...”
Decerto,
essa eloquente figura da tecla de piano ou pedal de órgão tocados pelas leis da
natureza, como se o ser humano não fosse dotado de liberdade e de vontade, é
uma punhalada no peito das correntes de pensamento deterministas e
cientificistas, dentre as quais se insere o marxismo, que atribui toda a culpa
da injustiça ao sistema, ignorando a autonomia do indivíduo.
Com
uma lucidez e sarcasmo ferozes, arremata o grande autor russo:
“Realmente,
eu, por exemplo, não me espantaria nem um pouco se, de repente, em meio a toda
a sensatez futura, surgisse algum cavalheiro de fisionomia pouco nobre, ou
melhor, retrógrada e zombeteira, e pusesse as mãos na cintura, dizendo a todos
nós: pois bem, meus senhores, não será melhor dar um pontapé em toda esta
sensatez unicamente a fim de que todos esses logaritmos vão para o diabo, e
para que possamos mais uma vez viver de acordo com a nossa estúpida vontade?!”
Sim,
caro leitor. O homem é mais do que um pedal de órgão, do que uma tecla de piano.
É ele quem toca o órgão, quem toca o piano. Mesmo diante das circunstâncias
mais adversas, das situações menos prováveis, a sua decisão, a sua conduta,
pode ser de todas a menos esperada, a menos prevista. A verdadeira liberdade do
homem é interior, como bem compreendeu Viktor Frankl, que também esteve no
inferno e saiu dele, o campo de concentração.
Mas
como esperar que entendam isso cientistas, filósofos e pensadores que rastejam
entre a materialidade das coisas, entorpecendo-se com a poeira do toque dos
sentidos e enxergando o homem apenas como um amontoado de carne que se move? A
liberdade não está na carne, meus senhores; está na alma. Quem duvida da
existência da alma, como sustentará a existência da liberdade? Afinal, a alma
do homem é livre até para descrer de si mesma, até para negar a verdade.
Paul Medeiros Krause
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