terça-feira, 30 de julho de 2013

SONHO DE UMA TARDE DE VERÃO (GUSTAVO CORÇÃO)

Entrei na papelaria-livraria perto do Largo do Machado para comprar um caderno de papel quadriculado para os meus esquemas e uma resma de papel sem pauta para as crônicas e os ensaios (por onde se vê que o pensamento mais solto e mais leve não gosta de papel cartesiano) e ia dirigir-me ao rapaz verde e triste que gastava vida atrás do balcão, quando um cavalheiro passou-me à frente e perguntou:

-- O senhor tem o 'Como evitar preocupações'?

O moço verde respondeu que não tinha, com a mesma desatenção e a mesma voz incolor que teria para quem lhe perguntasse se já chegara a última remessa de pedras filosofais ou se estava à venda a espada do rei Artur. 
Não, não tinha o 'Como evitar preocupações'. Tratava-se evidentemente de um livro, e enquanto o pobre homem foi-se embora com mais esta preocupação de achar o livro, fiquei eu parado, esquecido de minhas encomendas, a pensar na síntese de gaiatice que é a humanidade. Já vi livros de 'Como fazer amigos' ou 'Como evitar resfriados'. Já ouvi falar de muitos outros similares que cuidam de livrar o homem de tal ou qual aborrecimento, desde a coriza até os filhos. Nunca, entretanto, imaginara que alguém entrasse numa livraria, mormente no Largo do Machado, e com aquela confiante simplicidade, pedisse um livro para aprender a arte de evitar as preocupações.
 
Não, meu amigo, você não sabe o que é preocupação. Este peso no estômago da alma não pode existir em quem tão confiadamente acredita em livros e tão deliberadamente os procura. Faz parte da própria essência da preocupação o sentimento de não haver sedativo que a adormeça, porque no fundo todas as preocupações têm raízes na mesma chateação essencial que vem da má companhia que fazemos a nós mesmos. Em certas horas a gente tem a impressão de estar aturando o sujeito mais cacete do mundo, que entrou sem pedir licença e não parece desconfiar que as horas são intermináveis, que está fazendo calor por fora e por dentro, sim, calor, mormaço, tédio, pressão. Há diversas receitas já muito experimentadas para escapar a essa espécie de mal-estar. Foge-se pela porta dos fundos, diz-se a si mesmo que o próprio não está em casa, e vai-se para a esquina beber, jogar ou ver passar os efêmeros que nascem num alisar da porta e morrem no outro umbral. Mas cedo ou tarde, com arrependimento ou simplesmente preguiça, o fujão tem de voltar à triste companhia de si mesmo...
 
-- O senhor deseja alguma coisa? Perguntava o moço do balcão.

Ah! quem não deseja alguma coisa? Mas quem, quem entre as hierarquias dos anjos me dirá o que devo fazer nesta tarde de verão? Hein? Como? Ah! sim, eu queria um bloco de papel quadriculado e um liso. No momento todos os impulsos dos sentidos e do apetite espiritual se limitam a este modesto material de papelaria.

 
* Em "Melhores Crônicas Gustavo Corção", Editora Global.

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