segunda-feira, 2 de junho de 2014

EXCERTO DE "DOIS AMORES -- DUAS CIDADES"


“O primeiro efeito que preveríamos [da infiltração cultural do nominalismo], ou que observaríamos, é o da desvalorização do homem, a partir da desvalorização do conhecimento. Se se retrai ou contrai o conhecimento, é o homem que diminui. A catástrofe epistemológica será acompanhada inevitavelmente de uma catástrofe cultural e humanística. Resta saber em que direção se desvalorizou o homem. A história nos diz que essa degradação, disfarçada nos primeiros lances com as cores da emancipação, consistiu numa atenção voltada para a relação Homem-Natureza mais do que para as relações Homem-Deus e Homem-Homem.

[...]

Poderemos conceder que o nominalismo tenha contribuído para o progresso da Ciência positiva, que em si é um bem de inestimável valor? Até certo ponto cremos que o nominalismo ajudou o progresso científico. Quando mais não seja pelo fato de desviar maior número de estudantes bem dotados para a pesquisa científica do que para as especulações teológicas.
 
O que é indubitável é que o nominalismo, pelo descrédito trazido à teologia e à metafísica, produziu o ‘cientificismo’, isto é, a cultura comandada pela ciência, em vez de ser comandada pela religião e pela filosofia. Acompanhando a tendência empirista, vem a tendência ‘quantitativista’ e materializadora, que mais tarde, a partir de Descartes, ganhará enorme vigor. Outro efeito, de incalculáveis consequências, é o processo armado pelo nominalismo contra o ‘senso comum’. E ainda assinalaríamos o que chamamos a ‘desvalorização do valor’ especialmente promovida pelo positivismo, que é a mais virulenta reedição moderna do velho nominalismo.
 
[...] Veremos aí que a tendência exteriorizante do nominalismo se traduzirá na moral do egoísmo.

Merece ainda menção especial um prejuízo trazido pelo descrédito da metafísica e pela depressão da cultura religiosa dos tempos modernos: referimo-nos aos fatores que molestarão, durante quatro séculos, o desenvolvimento do ideal democrático, que seria a mais bela aquisição cultural dessa civilização se não estivesse ferida por tantos golpes.

[...]

 Comecemos aqui pelo ‘Cientifismo’. Como atrás já dissemos, esse termo não designa o maior incremento de pesquisas, o maior ardor de estudo nos domínios das ciências naturais. Tudo isto, em si, é bom. O que não é bom é o estado de espírito que coloca a Ciência da natureza na presidência de uma civilização, depois da abdicação da Sabedoria. Uma vez que a inteligência não alcança as coisas superiores, apliquemo-la nesse trabalho de apalpar os fenômenos para deles tirar uma nova confiança em nós mesmos, e para ordenhar a nosso gosto essa imensa mãe telúrica, brutal, que às vezes, no seu sono pesado, mata os próprios filhos.

[...]

A cândida ideia que ocorrerá a muitos espíritos é a seguinte: na continuação dos tempos, a Ciência polirá todas as arestas do Velho Homem, iluminará todas as trevas, resolverá todas as dificuldades. Ora, essa ideia, comicamente falsa, extravagantemente falsa, foi difundida e tornou-se o ar que respiramos e a água que bebemos; e isto só aconteceu porque a Civilização Ocidental Moderna já não tinha à sua presidência os dados da antiga sabedoria. Se a tivesse, ouviria a censura clara e irrefutável: a ciência dos elementos exteriores aumenta o domínio do homem sobre eles, mas não acrescenta nada ao domínio do homem sobre si mesmo. Conhecer a natureza inferior é bom; conhecê-la em detrimento do conhecimento da alma e de Deus não é bom.”

 

(Gustavo Corção, “Dois amores – duas cidades”)

 

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