Há
um pequeno trecho do evangelho de São Lucas que costuma escandalizar algumas
pessoas pouco afeitas à interpretação das sagradas escrituras. Parece mesmo que
o Divino Espírito Santo gosta de chocar e confundir alguns espíritos mais
suscetíveis e sempre prontos a arrancar os cabelos diante de qualquer dificuldade
interpretativa. É o seguinte: “e ela deu
à luz seu filho primogênito” (Lc 2, 7).
A
Bíblia de Jerusalém traz a seguinte nota ao trecho citado: “No grego bíblico, o termo não implica necessariamente a existência de
irmãos mais novos, mas sublinha a dignidade e os direitos da criança”.
Certamente,
muitos lembram-se da passagem de Esaú e Jacó, em que o primeiro, por um prato
de lentilhas – figura do pecado, em que trocamos a graça de Deus por qualquer bagatela
criada --, cede ao segundo o seu direito de primogenitura. Recordamo-nos,
também, do episódio em que Jacó se disfarça de Esaú, com a cumplicidade de sua
mãe, para receber a bênção paterna, destinada ao filho primogênito.
Deus
põe à prova a nossa confiança. Ele não aprecia espíritos excessivamente desconfiados,
inseguros. Pouco ou nada adiantaria o Espírito Santo ter inspirado a redação da
Bíblia se Ele também não suscitasse uma espécie de “Suprema Corte
Constitucional” que nos fornecesse uma “interpretação conforme à Constituição”
do texto sagrado. Essa “Suprema Corte Constitucional”, que nos interpreta a
Bíblia conforme à revelação de Deus, conforme Deus, é a Igreja Católica.
Os teólogos da
libertação dizem que o verdadeiro intérprete da Bíblia é o povo, oprimido pela
hierarquia católica. Mas eles, os teólogos da libertação, possuem também duas imagens
representativas no evangelho: Judas, ladrão dos direitos divinos, que quis
roubar o dinheiro do perfume que ungiu Jesus, sob pretexto de ajudar os pobres,
e Jesus Barrabás (“Bar-Abbas”, filho do pai. “Bar” significa filho; Bartimeu é
o filho de Timeu. Segundo muitos manuscritos antigos, Barrabás chamava-se Jesus),
o Jesus agitador, assassino, revolucionário, que pega em armas para promover
justiça social. Os teólogos da libertação são os que agitam o povo para
escolher o Jesus mundano, revolucionário, o Jesus “Che Guevara”, em lugar de
Jesus Cristo que veio salvar o povo dos seus pecados.
Ora,
diz-nos o evangelho, toda autoridade vem de Deus. (Quem entregou Jesus a
Pilatos tem pecado maior). Autoridade, não autoritarismo. Cristo deu as chaves
do reino dos céus a Pedro e constituiu apóstolos. É, pois, a hierarquia
católica sim que detém condições, lançando mão de todos os meios próprios,
históricos, linguísticos, espirituais, para fixar a correta interpretação do
texto bíblico.
“Não vos deixarei órfãos”, disse Jesus.
Nem mesmo em questões interpretativas. A Igreja que é nossa mãe e mestra
toma-nos pelas mãos e nos explica carinhosamente a palavra do Pai.
Pois
bem, meus amigos. Feita essa digressão, convém recordar que na Bíblia não há
palavras ociosas. Às vezes, um mesmo trecho bíblico possui infinitos sentidos lícitos
possíveis, que não contrariam o ensinamento da Igreja. Sempre há sentidos
espirituais muito profundos ocultos em cada uma das palavras do texto sagrado.
Se
aquele pequeno trecho de São Lucas realça a dignidade do recém-nascido, também
chamado depois por São Paulo de “primogênito da criação”, “o novo Adão”, há
também outros sentidos possíveis de ser encontrados nele.
De
fato, Jesus Cristo foi o filho primogênito de Maria. O princípio do evangelho
de São Lucas já indica o que a Igreja com tanta sabedoria intuiu: que Maria é
nossa mãe. No Evangelho de São João não está dito: “Mulher, eis teu filho!” e “Eis
tua mãe” (Jo 19, 26-27)?
Diz
São Luís Maria Grignion de Montfort, no “Tratado da Verdadeira Devoção à
Santíssima Virgem”:
“Conforme a explicação de alguns Santos Padres o
primeiro homem nascido em Maria é o homem-Deus, Jesus Cristo; o segundo é um
homem puro, filho de Deus e de Maria por adoção. Se Jesus Cristo, o chefe dos
homens, nasceu nela, os predestinados, que são membros deste chefe, devem
também nascer nela, por uma consequência necessária. Não há mãe que dê à luz a
cabeça sem os membros ou os membros sem a cabeça; seria uma monstruosidade da
natureza. Do mesmo modo, na ordem da graça, a cabeça e os membros nascem da
mesma mãe, e, se um membro do corpo místico de Jesus Cristo, isto é, um
predestinado, nascesse de outra mãe que Maria, que produziu a cabeça, não seria
um predestinado, nem membro de Jesus Cristo, e sim um monstro na ordem da
graça.”
Acrescenta
São Luís Maria:
“Assim como na geração natural e corporal há um pai
e uma mãe, há, na geração sobrenatural, um pai que é Deus e uma mãe, Maria
Santíssima. Todos os verdadeiros filhos de Deus e os predestinados têm Deus por
pai, e Maria por mãe; e quem não tem Maria por mãe, não tem Deus por pai.”
Por
isso, meus irmãos, meditemos sempre com profunda veneração nessas palavras de
São Lucas: “e ela deu à luz seu filho
primogênito”. Não nos perturbemos ante a sua abundância de sentido. Nós
somos os outros filhos de Maria.
Paul Medeiros Krause
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