sexta-feira, 20 de junho de 2014

O PRIMOGÊNITO


 

            Há um pequeno trecho do evangelho de São Lucas que costuma escandalizar algumas pessoas pouco afeitas à interpretação das sagradas escrituras. Parece mesmo que o Divino Espírito Santo gosta de chocar e confundir alguns espíritos mais suscetíveis e sempre prontos a arrancar os cabelos diante de qualquer dificuldade interpretativa. É o seguinte: “e ela deu à luz seu filho primogênito” (Lc 2, 7).

 

            A Bíblia de Jerusalém traz a seguinte nota ao trecho citado: “No grego bíblico, o termo não implica necessariamente a existência de irmãos mais novos, mas sublinha a dignidade e os direitos da criança”.

 

Certamente, muitos lembram-se da passagem de Esaú e Jacó, em que o primeiro, por um prato de lentilhas – figura do pecado, em que trocamos a graça de Deus por qualquer bagatela criada --, cede ao segundo o seu direito de primogenitura. Recordamo-nos, também, do episódio em que Jacó se disfarça de Esaú, com a cumplicidade de sua mãe, para receber a bênção paterna, destinada ao filho primogênito.

 

            Deus põe à prova a nossa confiança. Ele não aprecia espíritos excessivamente desconfiados, inseguros. Pouco ou nada adiantaria o Espírito Santo ter inspirado a redação da Bíblia se Ele também não suscitasse uma espécie de “Suprema Corte Constitucional” que nos fornecesse uma “interpretação conforme à Constituição” do texto sagrado. Essa “Suprema Corte Constitucional”, que nos interpreta a Bíblia conforme à revelação de Deus, conforme Deus, é a Igreja Católica.

 

Os teólogos da libertação dizem que o verdadeiro intérprete da Bíblia é o povo, oprimido pela hierarquia católica. Mas eles, os teólogos da libertação, possuem também duas imagens representativas no evangelho: Judas, ladrão dos direitos divinos, que quis roubar o dinheiro do perfume que ungiu Jesus, sob pretexto de ajudar os pobres, e Jesus Barrabás (“Bar-Abbas”, filho do pai. “Bar” significa filho; Bartimeu é o filho de Timeu. Segundo muitos manuscritos antigos, Barrabás chamava-se Jesus), o Jesus agitador, assassino, revolucionário, que pega em armas para promover justiça social. Os teólogos da libertação são os que agitam o povo para escolher o Jesus mundano, revolucionário, o Jesus “Che Guevara”, em lugar de Jesus Cristo que veio salvar o povo dos seus pecados.

 

            Ora, diz-nos o evangelho, toda autoridade vem de Deus. (Quem entregou Jesus a Pilatos tem pecado maior). Autoridade, não autoritarismo. Cristo deu as chaves do reino dos céus a Pedro e constituiu apóstolos. É, pois, a hierarquia católica sim que detém condições, lançando mão de todos os meios próprios, históricos, linguísticos, espirituais, para fixar a correta interpretação do texto bíblico.

 

            “Não vos deixarei órfãos”, disse Jesus. Nem mesmo em questões interpretativas. A Igreja que é nossa mãe e mestra toma-nos pelas mãos e nos explica carinhosamente a palavra do Pai.

 

            Pois bem, meus amigos. Feita essa digressão, convém recordar que na Bíblia não há palavras ociosas. Às vezes, um mesmo trecho bíblico possui infinitos sentidos lícitos possíveis, que não contrariam o ensinamento da Igreja. Sempre há sentidos espirituais muito profundos ocultos em cada uma das palavras do texto sagrado.

 

            Se aquele pequeno trecho de São Lucas realça a dignidade do recém-nascido, também chamado depois por São Paulo de “primogênito da criação”, “o novo Adão”, há também outros sentidos possíveis de ser encontrados nele.

 

            De fato, Jesus Cristo foi o filho primogênito de Maria. O princípio do evangelho de São Lucas já indica o que a Igreja com tanta sabedoria intuiu: que Maria é nossa mãe. No Evangelho de São João não está dito: “Mulher, eis teu filho!” e “Eis tua mãe” (Jo 19, 26-27)?

 

            Diz São Luís Maria Grignion de Montfort, no “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”:

 

“Conforme a explicação de alguns Santos Padres o primeiro homem nascido em Maria é o homem-Deus, Jesus Cristo; o segundo é um homem puro, filho de Deus e de Maria por adoção. Se Jesus Cristo, o chefe dos homens, nasceu nela, os predestinados, que são membros deste chefe, devem também nascer nela, por uma consequência necessária. Não há mãe que dê à luz a cabeça sem os membros ou os membros sem a cabeça; seria uma monstruosidade da natureza. Do mesmo modo, na ordem da graça, a cabeça e os membros nascem da mesma mãe, e, se um membro do corpo místico de Jesus Cristo, isto é, um predestinado, nascesse de outra mãe que Maria, que produziu a cabeça, não seria um predestinado, nem membro de Jesus Cristo, e sim um monstro na ordem da graça.”

 

            Acrescenta São Luís Maria:

 

“Assim como na geração natural e corporal há um pai e uma mãe, há, na geração sobrenatural, um pai que é Deus e uma mãe, Maria Santíssima. Todos os verdadeiros filhos de Deus e os predestinados têm Deus por pai, e Maria por mãe; e quem não tem Maria por mãe, não tem Deus por pai.”

 

            Por isso, meus irmãos, meditemos sempre com profunda veneração nessas palavras de São Lucas: “e ela deu à luz seu filho primogênito”. Não nos perturbemos ante a sua abundância de sentido. Nós somos os outros filhos de Maria.

 

 

 

Paul Medeiros Krause

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