Se
o leitor amigo ainda não houver percebido, aviso-lhe que possuo um pendor especial
por São Francisco de Sales. Sempre gostei de ler a vida dos santos e os livros
escritos por eles; mas houve um momento, talvez em minha adolescência, em que resolvi
dedicar as minhas melhores energias à leitura dos doutores da Igreja. Com todo
o respeito que devo a São Francisco de Assis e a todos os santos, os doutores
da Igreja, a partir do início de minha juventude, passaram a ser minha
predileção de leitura. Parece que, ao ler uns e outros, os não doutores e os
doutores, eu sentia uma diferença, duas ordens de qualidade, uma proeminência
colossal dos últimos, salvo engano, hoje, num total de trinta e cinco.
Em
primeiro lugar, não posso negar, reina soberano no altar do meu coração Santo
Agostinho com o seu em chamas. Em segundo, Santa Teresa de Ávila com o seu
transpassado pela flecha do amor divino. Em terceiro, não muito distante de
Santa Teresa, o grande São Francisco de Sales.
São
Francisco de Sales, na minha opinião, é o diretor espiritual por excelência. É
raro encontrar em alguém tanta profundidade, tanta suavidade, tanto equilíbrio
e tanto espírito prático. Além disso, para quem escreveu há mais ou menos
quatrocentos anos, chega a chocar a sua espantosa atualidade. Seu “Filoteia” ou
“Introdução à vida devota” é um belíssimo clássico de leitura mais que
obrigatória.
Foi
com profunda reverência que contemplei uma imagem do santo doutor no Caraça.
Sempre humilde, sempre discreto como seu pai e senhor São José, lá está São
Francisco de Sales, inspiração de Dom Bosco e dos salesianos, no fundo da
igreja.
Ora,
foi também na adolescência e no início da juventude que me acometeu uma espécie
de tentação comum a algumas pessoas. Na época, eu frequentava uma paróquia e um
grupo ligado à Renovação Carismática. A Renovação Carismática é uma obra
belíssima de Deus, necessária à Igreja e aprovada pelo Papa. Eu não seria louco
de dizer algo contra ela. Mas posso dizer algo contra alguns erros de pessoas
que dela participam.
Há
pessoas na Renovação Carismática, e durante muito tempo foi o meu caso, que
procuram interpretar os acontecimentos mais insignificantes da vida como se
fossem sinais de Deus. Uma folha que cai, um papel no chão, uma batida de
carro, um apito, um assovio, um pio de passarinho. Algumas têm o hábito de
abrir a Bíblia aleatoriamente, tirando a sorte para ver o que Deus quer dizer.
Já fiz isso muitos vezes. Hoje não me parece que seja uma boa prática.
Numa
das mais belas páginas até hoje escritas, São Francisco de Sales, no seu “Tratado
do amor de Deus”, continuação do “Filoteia”, traz um “breve método para
conhecer a vontade de Deus”. E a principal lição do santo doutor e bispo de
Genebra é esta: não se pesa moeda miúda, isto é, não se deve perder tempo
tentando discernir a vontade de Deus a respeito de ações insignificantes, irrelevantes.
No que é irrelevante do ponto de vista moral, tanto faz uma coisa como outra.
Dediquemo-nos a meditar sobre o que realmente importa. Ensina ele:
“Mas,
Teótimo [nome
que ele dá ao espírito humano],
advirto-vos de uma tentação aborrecida que múltiplas vezes sobrevém às almas
que têm grande desejo de em tudo seguir aquilo que é mais conforme à vontade de
Deus; pois em todas as ocorrências o inimigo as põe em dúvida sobre se é a
vontade de Deus que elas façam uma coisa de preferência a outra; como, por
exemplo, se é vontade de Deus que elas comam com o amigo ou não comam, que usem
roupas cinzentas ou pretas, que jejuem na sexta-feira ou no sábado, que vão à
recreação ou que dela se abstenham, coisa em que elas consomem muito tempo; e,
enquanto se ocupam e embaraçam em querer discernir o que é melhor, perdem
inutilmente o tempo de fazer vários bens, cuja execução daria mais glória a
Deus do que poderia dá-la o discernimento do bom e do melhor em que elas se
distraíram.
Não
se costuma pesar a moeda miúda, mas somente as moedas de importância. O
comércio seria por demais aborrecido e consumiria muito tempo se fosse preciso
pesar os soldos, os ‘liards’, os dinheiros e as pitas. Assim não se devem pesar
toda sorte de pequeninas ações para saber se elas valem mais do que outras. Há
mesmo muita superstição em querer fazer esse exame [...] Cumpre medirmos a
nossa atenção pela importância daquilo que empreendemos: seria um cuidado
desregrado dar-se tanto trabalho para deliberar sobre uma viagem de um dia a
fazer, como sobre uma de trezentas ou quatrocentas léguas.”
Mas
há ainda uma outra tentação em que muitas vezes incorremos. A de achar que Deus
nos ordena ou permite uma coisa que é proibida às outras. Trata-se de uma espécie
de síndrome de Raskólnikov, o célebre protagonista de “Crime e castigo” de
Dostoiévski, um de meus escritores favoritos (os clássicos são uma espécie de doutores!). Quantas vezes eu não pensei: “aos
outros, à generalidade das pessoas, isso é proibido, está na Bíblia! Mas eu, eu
sou tão bom, eu sou tão... tão... tão especial... eu posso! Deus não vai se
importar se eu fizer isso!” Não, amigo leitor. Essa é uma maldita tentação
diabólica. Notem a minha falta de humildade.
Se alguém passar
por isso, atente para o seu orgulho, para a sua presunção. Há quem, por
exemplo, às vezes fique acalentando a ideia de namorar ou “juntar” com um divorciado
ou divorciada ou ter um namoro “liberal”, sob pretexto semelhante. Argumenta-se:
“Deus me disse.” “Deus me revelou.” “Deus me falou na oração.” “Eu tirei na
Bíblia!” Balela! Quem lhe falou foi o diabo!
Não
me lembro em que lugar, mas na Sagrada Escritura se encontra: “a ninguém Deus
deu licença para pecar”.
Com
efeito, naquela mesma singular página, São Francisco de Sales esclarece: quanto
à vontade de Deus claramente manifestada, na Bíblia, nos mandamentos, no
Magistério da Igreja, no conselho do diretor espiritual, não há o que discutir,
não há o que tergiversar. Permita-me trazer então mais um pouco da tão falada
página:
“São
Basílio diz que a vontade de Deus nos é manifestada por suas ordens ou
mandamentos, e que então nada há que deliberar; porque se deve fazer com
simplicidade aquilo que é ordenado; mas que, quanto ao mais, na nossa liberdade
está o escolhermos a nosso gosto o que bem nos parecer, embora não se deva
fazer tudo o que é lícito, mas só o que é conveniente; e que, enfim, para bem
discernir o que é conveniente, deve-se ouvir o conselho do prudente pai
espiritual.”
Quanto ao mais, em que a vontade de Deus
não é claramente manifestada, distingamos as ações relevantes das irrelevantes:
“A
escolha da vocação, o projeto de algum negócio de longa consequência, de alguma
obra de longo fôlego, ou de alguma despesa muito grande, a mudança de
residência, a escolha de conversas, e tais coisas semelhantes, merecem que
pensemos seriamente sobre o que é mais conforme à vontade divina. Mas nas
pequenas ações diárias, em que a própria falta não é nem de consequência nem
irreparável, que necessidade há de fazer de atarefado, de atento e de
embaraçado em fazer consultas importunas? [...] Deve-se andar com toda boa fé e
sem sutileza em tais ocasiões; e, como diz São Basílio, fazer livremente o que
bem nos parecer, para não cansarmos o espírito, não perdermos o tempo e não nos
pormos em perigo de inquietação, escrúpulo e superstição. Ora, eu aqui entendo
sempre o caso em que não há grande desproporção entre uma obra e outra, e não
se encontra circunstância considerável de uma parte mais do que da outra.
Nas
próprias coisas de consequência, deve-se ser humilde, e não pensar achar a
vontade de Deus à força de exame e de sutileza de raciocínio. Mas, depois de
havermos pedido a luz do Espírito Santo, de termos aplicado a nossa
consideração à indagação do seu beneplácito, tomado o conselho do nosso diretor
e, se for o caso, de outras duas ou três pessoas espirituais, devemo-nos
resolver e determinar em nome de Deus, e não devemos depois pôr em dúvida a
nossa escolha, mas cultivá-la e sustentá-la devota, tranquila e constantemente.
E embora as dificuldades, tentações e diversidades de sucessos que se encontrem
no progresso da execução de nosso desígnio possam suscitar-nos alguma
desconfiança de não havermos escolhido bem, devemos todavia permanecer firmes,
e não olhar a tudo isso, mas considerar que, se houvéssemos feito outra
escolha, talvez tivéssemos achado cem vezes pior: além de que não sabemos se
Deus quer que sejamos exercitados na consolação ou na tribulação, na paz ou na
guerra. Estando a resolução santamente tomada, nunca se deve duvidar da
santidade da execução: porquanto, se ela não depende de nós, não pode falhar;
fazer diversamente é uma prova de grande amor-próprio ou de infância, fraqueza
ou parvoíce de espírito.”
Paul Medeiros Krause
Excelente! DEUS no comando! Wagner.
ResponderExcluirExcelente! DEUS no comando! Wagner.
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