quinta-feira, 29 de maio de 2014

O MENDIGO



As golas das suas camisas não fechavam mais. Devido à espessura do seu pescoço, os botões não mais entravam nas casas. Muitas daquelas estavam desbotadas. Uma ex camisa azul agora era lilás. As mangas de quase todas, não sabia por quê, estavam menores do que os seus braços. Já fazia tempo não usava gravatas. As pernas de algumas calças jeans estavam muito compridas; sem dobras, arrastavam-se no chão. O cinto de couro marrom ameaçava romper-se perto do furo mais usado. Alguns de seus dentes, quase na gengiva, tinham manchas amarronzadas, talvez pelo consumo excessivo de café. Suas roupas de baixo pareciam trapos. Estava acima do peso. O rosto inchado. A barriga em formato de pera.

 

Já há anos não ia ao médico nem ao oculista. Seu dentista, há muito, cobrava a extração dos sisos. Seus óculos apertavam as laterais do rosto formando dois sulcos e, muito provavelmente, o grau das lentes havia sido ultrapassado pela necessidade da vista. Ao aguardar, sentado, o início de uma audiência, deu-se conta de novo de que a sola de seu sapato estava furada. (Mas o incômodo mesmo foi pensar que ali, num lugar solene, estando de pernas cruzadas, poderiam ver-lhe a incômoda ferida. Já se havia acostumado com a chaga aberta do sapato, oculta sob seus pés).

 

Os flertes tornaram-se escassos. A indiferença, o seu pão cotidiano. Os convites, nulos. O desprezo, seu cão de estimação. Descia ladeira abaixo. Rolava. O desgaste era completo. O cansaço, imenso. Dava-se conta disso. Estava plenamente consciente. Só não encontrava forças. Não encontrava ânimo. Estava exausto.

 

Alguma coisa devia estar errada. Fora do lugar. (Não era possível!) Há certas vidas que são morte. Há certas mortes que são vida.

 

De quando em quando lembrava-se da primeira página de “A descoberta do outro”. Gustavo Corção recordava um trecho de Alexandre Herculano: “Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver?” Era como ele próprio se sentia. Extenuado de uma longa viagem, de uma viagem de quarenta anos; amarrado ao próprio cadáver. Arrastando-o aonde quer que fosse. Havia dois eus. Um eu morto e um eu vivo. O vivo conformado com a morte do outro. O morto, inerme, impassível, um peso insuportável para o vivo.

 

Sua alma estava em farrapos. Sentia-a surrada, espancada, saqueada. Não sei com base em que chegava a essa conclusão, mas parecia-lhe que a sua parte imaterial havia apanhado a pauladas, tivesse vértebras quebradas. Com forças esvaziadas, nulas, após lutar com um adversário muito maior e mais forte, era como um semimorto deixado em qualquer parte.

 

Havia uma pedra no meio do caminho. Uma pedra enorme. No meio dele, em cima dele, do lado dele, dentro dele. Estava fincado na lama. Não saía do lugar, patinava e cada vez mais se sujava e afundava.

 

Seus olhos, seus sonhos e a sua vida estavam gastos. Sua alma envelhecera. Era preciso trocar de vida. Era preciso trocar de alma.

 

Ele era um mendigo. Mendigo da misericórdia de Deus e da benevolência dos homens. Um esmoler. Vivia de esmolas grandes e pequenas, que às vezes o tornavam rico. Ainda assim porém eram esmolas.

 

O nosso mendigo ia da extrema riqueza à infinita pobreza de um dia para o outro ou, mesmo, de um instante a outro. De possuidor do céu a merecedor do calor do inferno. Sentia mesmo caminhar no céu e, de repente, mergulhar no abismo sob seus pés. Imaginava entender bem a voz de Deus, o seu peculiar dialeto, o seu particularíssimo idioma. Sendo Deus espírito, sabia que a sua forma de comunicar-se era espiritual, diferente da dos homens. Não se tratava de uma sucessão de palavras pronunciadas. Outras vezes, parecia-lhe sentir o hálito de Baal, ser arrastado pelo diabo por becos escuros e caminhos tortuosos, quase sem volta e sem forças para reagir.

 

Do banquete às bolotas dos porcos. Do palácio à sarjeta. O nosso mendigo vivia de extremos: do refinado requinte à miséria completa. Da contemplação de Deus à companhia dos demônios. Do banquete nupcial aos esbarrões com os ratos e aos pisões no esgoto.

 

Que fazer? Que devia fazer? Como deixar a mendicância que parecia mais forte do que ele, que parecia arrastá-lo – como uma correnteza invisível –, para atos e pensamentos soturnos? Como romper as cordas invisíveis que moviam seus braços, que fisgavam suas pernas, que o agitavam como uma marionete, sem força, nem vontade?

 

Ah, o nosso mendigo! Eu ainda o vejo perambulando pelas ruas da cidade, pedindo esmolas em toda parte. Mendigando ali, esmolando aqui, esperando por um milagre. Ah! eu vejo aquele mendigo esperando o céu se abrir e a sua redenção cair de lá de cima como um tijolo. Ah! eu vejo o meu mendigo nos bares, restaurantes, esquinas, mendigando afeto, implorando olhares, de um jeito bastante esquisito. Eu sinto da sua solidão a espessura. Da sua escuridão, a tessitura. Dos seus tombos, a fratura.

 

Lá vai ele, o mendigo! Outra vez. Mais uma vez. Em mais uma noite que o desfez, que o partiu ao meio. Lá vai ele. No seu passo sempre igual...

 

Pensando bem, pode ser que o nosso mendigo não mendigasse afeto. Pode ser que ele, inconscientemente, procurasse outra coisa, que tivesse, sem saber, uma fome de outra natureza. Às vezes penso que ele tinha fome de beleza. A beleza era como que necessária aos seus ossos porosos, à sustentação do seu esqueleto. A beleza, não a convenção, era um feixe de luz para a sua vista, era como que uma pista, uma indicação, algo a iluminar o caminho a seguir.

 

Sem a beleza, ele era o mais pobre de todos os homens. O mais surdo de todos os surdos, o mais mudo de todos os mudos, o mais cego e mais aleijado de todos os nascidos de mulher. Havia nele uma espécie de envenenamento, de intoxicação. A beleza era o antídoto. O seu natural era dotado de uma espécie de retração, de convulsão, de aversão à feiura. A feiura cegava-o. Feria-o. A feiura esmagava-o. Envenenava-o. Quebrava-o. Em uma palavra, a feiura matava-o.

 

Cada vez mais tomava consciência de que a beleza lhe era absolutamente, completamente, urgentemente, necessária. A feiura asfixiava-o, algemava-o, amarrava-o. Havia nele como que uma angustiosa dependência química. Ele precisava respirar oxigênio. Precisava de ar puro. Precisava deixar a beleza entrar suavemente pela janela da sua vida, pelas comportas da sua alma, como o frescor das manhãs, como uma sinfonia de bem-te-vis, exorcizando a feiura.

 

Pensava ele: “a beleza cura”, “a beleza salva, ela me salvará”, “a beleza me erguerá, me satisfará, me saciará”. Acrescentava com os seus botões: “O ‘idiota’ é o mais belo livro já escrito: a beleza, com toda a certeza, sem nenhuma dúvida, sem qualquer dúvida, irresistivelmente, inapelavelmente, salvará o mundo. E, se ela salva o mundo, também me salvará.” Sentia isso o idiota, digo, o nosso amigo.
 

 

* O presente texto foi deliberadamente modificado. Provavelmente, o será novamente e está inconcluso. Trata-se de uma experiência. Aguardem posteriores mudanças e complementos. Espera-se que um dia seja concluído.
 

 

Paul Medeiros Krause

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