Em um texto recente, eu
afirmei que todo murmurador é como o mau ladrão do evangelho. E que, na
verdade, todos nós somos injustos, ladrões da glória de Deus. Não há justiça ou
honestidade oponíveis a Deus. Diante de Deus, ninguém reclama com justiça. Toda
reclamação ou murmúrio dirigidos a Deus são injustos.
Gostaria de avançar um
pouco nessa meditação. Tenho para mim que todos nós estamos representados na
paixão e morte do Senhor. A humanidade divide-se entre os dois ladrões, pois,
repito, diante da inconcebível pureza de Deus, não há quem possa alegar
inocência. (Se soubéssemos do que vamos prestar contas após a nossa morte,
certamente surpreender-nos-íamos com o nível de exigência, lembra Santa
Faustina. No Juízo Final, só teremos roubos a apresentar a Deus, pois até as
nossas boas ações foi Ele quem fez em nós.) A única diferença é que uns têm
consciência de que sofrem justamente – “para nós é justo. Ele, porém, não fez
mal algum”, diz o bom ladrão –, outros, não. Ainda hoje diz o mau ladrão: “Se
és o filho de Deus, salva-te a ti mesmo e a nós”. Quem sabe se ele não quer
dizer: “salva a tua Igreja e a nós dos males deste mundo”?
O bom ladrão também pede
o auxílio divino. Ele não é autossuficiente. Ele é consciente de que não tem
boas obras em que se apoiar para reivindicar alguma coisa. Mas os seus olhos
estão postos no reino vindouro, em realidades transcendentes, mais altas:
“Lembra-te de mim quando vieres em teu reino”. O mau ladrão é imediatista.
Primeiro, ele questiona, põe em dúvida, o poder de Cristo. Em seguida, ele pede
alívio instantâneo, temporal, mundano: “salva-te a ti mesmo e a nós” [da cruz,
da morte, do sofrimento neste mundo]. O mau ladrão não enfrenta o sofrimento
com ânimo de reparação. O bom ladrão, sim. Aliás, completamente nu na cruz,
preso pelas mãos e pelos pés, a única coisa que o bom ladrão poderia oferecer a
Deus era a reparação, a aceitação da dor. Por isso mesmo, ele entrou no paraíso
naquele mesmo dia. Mais do que isso: ele é um dos santos da Igreja, São Dimas.
Queixamo-nos de Deus
pela desordem em que o mundo anda. Mas, quem violou a ordem querida por Deus
foi o homem, não o próprio Deus, que não pode contradizer-se. É curioso o modo
de o homem encarar o próprio pecado: “Ai, meu Deus! Eu não queria esse efeito,
essa consequência do pecado que eu não tinha previsto!” Estranho esse
comportamento, não?! Nós trazemos o pecado ao mundo, com suas consequências de
múltiplas ordens, e nos queixamos de Deus por não impedir certas consequências
dos nossos pecados. “Eu não queria que a minha desordem fosse tão
desordenada!!”, “Eu não queria que a minha desobediência tivesse efeitos tão
desastrosos!!”, pensamos. Ora, quando Deus proibiu o pecado, Ele o fez sabendo
de todas as suas múltiplas consequências, inclusive aquela de atingir pessoas
inocentes. Deus não é culpado de o bêbado atropelar e matar uma velhinha
indefesa. Ou era obrigação do anjo da guarda da velhinha desviar o carro com as
próprias mãos?
Os efeitos danosos do
pecado são uma espécie de ação livre na causa. Ao cometermos o erro, somos
responsáveis também pelos seus efeitos. Não é incumbência divina ficar tolhendo
os efeitos de nossos atos de desobediência. Creio até que Deus o faça inúmeras
vezes, por liberalidade, mas não há um direito nosso, oponível a Ele, a respeito
disso.
O pecado é uma espécie
de estelionato. O diabo, quando nos propõe uma ação má, o faz como o golpista
que quer vender-nos o falso bilhete premiado da loteria. Ele promete uma
realidade mundana ilusória, uma vantagem próxima falsa, contando também com uma
certa malícia nossa, cupidez, propensão para o mal. O fruto da árvore da
ciência do bem e do mal possuía bom aspecto. Comprado o bilhete falso, a ilusória
alegria prometida, o pecador iludido não só deixa de lucrar o prêmio, como tem
diminuído o seu verdadeiro patrimônio, a graça de Deus em sua alma. Saboreado o
fruto da árvore da ciência do bem e do mal, Adão e Eva não só não se tornaram
deuses, como ficaram nus, pois antes a graça de Deus os vestia.
Nem sempre nos damos
conta disto: o demônio cobra, e caro!, de quem quer trabalhar para ele. Ao
invés de retribuir, ele cobra, ele engana, ele rouba. Ele arromba as portas da
nossa alma, roubando-nos tudo o que ali temos de mais precioso, e não deixa
nada. Os dois ladrões estão nus.
Deus ao contrário, que
já nos deu tudo, recompensa-nos por trabalhar para Ele. 10, 20, 30, 100 por um!
O direito contempla a
hipótese de deserdação por ingratidão. No plano espiritual acontece algo
semelhante: toda vez que pecamos usamos os bens que nos foram doados por Deus
contra o próprio doador. Toda pecado é uma ingratidão, uma ofensa ao Doador de
todos os dons. Nada mais justo seria que fôssemos deserdados.
Até para pecar nada
usamos de próprio. Tudo o que usamos no pecado nos foi doado por Deus: o corpo,
a memória, a vontade, os bens. Todos os dons nos foram doados para o louvor da
glória de Deus, mas nós os empregamos para o nosso próprio deleite. Somos ou
não usurpadores? Somos ou não somos ladrões?
Mas eu não digo essas
palavras para desanimar ninguém. E não as digo como quem se encontra em melhor
situação espiritual. Ao contrário, faço-o como doutor honoris causa em pecado. Digo-o apenas para lembrá-los e, ao
lembrá-los, lembrar-me de que até o último momento podemos tornar-nos o bom
ladrão. Não seremos felizes buscando a nossa própria glória, buscando-nos a nós
mesmos, pois isso não é amor. Seremos felizes buscando um Outro, a glória de Outro,
para que todos nós e tudo quanto existe está pré-ordenado. Deus, que é o
próprio amor em Três Pessoas que se amam, estabeleceu que nos salvemos pelo
amor.
Paul Medeiros
Krause
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