Conheci um jovem que, no seu
último dia de aula na oitava série, lá pelos fins dos anos 80, tomou o ônibus 8001,
rumo ao BH Shopping, com vários colegas de turma que resolveram celebrar a
amizade. Naquela época, este era o único shopping da capital mineira, pelo
menos, o único importante.
No
meio das conversas e risos, já entremeados de saudades, o rapaz, com alguns
amigos, entrou na não mais existente “Hi-Fi”, que havia ali, perto da antiga
praça de alimentação. A loja de discos, de aspecto muito moderno e refinado,
possuía umas cabines extraordinárias em que se podia ouvir sozinho algum “LP”
previamente escolhido.
Havia
uma música que deixava aquele rapaz quase que em transe toda vez que a ouvia. Ele
não tinha lá muito dinheiro, de modo que não lhe seria possível comprar o disco
tão desejado. Apesar disso, estava consciente de que se apresentava diante dele
uma oportunidade singular: a de poder ouvir algumas vezes os solos de Fender
Stratocaster que quase o tiravam de si.
Então
acorreu ele decidido a uma das estantes, tomou o disco “Dire Straits”, que leva
o mesmo nome da banda, e resoluto entrou em uma daquelas cabines. A faixa
escolhida era “Sultans of Swing”. Basta dizer que o moço escutou essa música um
número tão grande de vezes que algum diligente empregado da “Hi-Fi” viu-se
obrigado a desligar a energia da cabine. Constrangido, o nosso amigo teve de
deixar a loja e o disco, fingindo que nada lhe acontecera.
Faço
esta introdução, para relatar outra espécie de transe, uma espécie de
microêxtase. Por causa dele, matei algumas aulas no secundário. Trazia comigo
escritos de uma mulher apaixonada, de uma inteligência pouco comum, cheia de
vida, de bom humor e de um extraordinário entusiasmo. Tais escritos, que sempre
falavam de amor (ainda que da espécie mais rara), revezavam-se. Por vezes, eram
“O Castelo Interior ou Moradas”, outras, “O Livro da Vida”, outras ainda, o
“Caminho de Perfeição”. Esses livros punham-me em contato com um outro mundo, com
um universo até então desconhecido.
Se
há uma coisa que sempre me atraiu é uma espécie de intemperança no amor, um
certo descomedimento ou expansão, como se um sentimento metódico, burocrático,
meramente protocolar, fosse exatamente a antítese do amor verdadeiro.
Exatamente
por isso, apaixonei-me por Santa Teresa de Jesus, ou de Ávila, logo na primeira
página. Há nela um amor transbordante, espontâneo, aberto, despido de neuras e
de escrúpulos. É um gênio, mas é simplesmente ela mesma. Apresenta-se tal como
é. Suas palavras, como a de um número seleto de escritores, exalam fogo,
parecem escritas com sangue. Não há como não se sentir inflamado.
De
Santa Teresa pode-se dizer que como poucos soube unir o rigor do conteúdo à
perfeição da forma, a profundidade e a clareza, a sutileza das figuras e a
beleza dos exemplos. Que dizer, por exemplo, de como ela designa a imaginação:
“a louca da casa”? Ou da metáfora do “bicho da seda”?
Este
que lhe escreve, caro leitor, é um rapazinho de uniforme, que quer lhe falar
dos seus gostos, da sua façanha na “Hi-Fi”, do seu amor por Teresa. Como não
amar Teresa?
Lembro-me
de que em seu programa diário, da sua tribuna radiofônica, o saudoso Dom João
Resende Costa gostava de mencionar o livro de um autor protestante, René Füllop-Müller,
intitulado “Os santos que abalaram o mundo”. Teresa está lá, neste livro, ao
lado de Santo Antão, Santo Agostinho, São Francisco e Santo Inácio de Loyola.
Ela é a única mulher. É a santa da transverberação, “a santa do êxtase”, também
magistralmente retratada por Bernini. É a mulher do coração atravessado por uma
seta do amor divino.
Teresa,
doutora da Igreja, mestra de vida espiritual, tem muito a falar e a ensinar ao
homem de hoje. Ao homem inquieto que se entope de barulho por todos os lados. Ao
homem que teme o silêncio e liga a televisão já no café da manhã para não ter de
enfrentar a si mesmo. Ao jovem que conhece os recursos do iPhone e do iPad mas nunca
ouviu falar das potencialidades da alma.
O
homem de hoje percorre o mundo inteiro. Vai à China, ao Japão, ao Himalaia.
Gaba-se de verter umas Guinness na Irlanda (o que de fato deve ser uma experiência
emocionante, não nego), de visitar a Torre Eiffel, de assistir ao show do Paul
McCartney na Praça Vermelha. Tudo bem. Não há nisso qualquer problema. Mas o
que mais importa é saber abrir as portas de um castelo (“a porta do castelo”–
da alma – “é a oração”). Explorar um mundo escondido, mais belo, mais rico,
interior. Invisível mas palpável. Conhecer belezas insuspeitadas e sublimes.
Experimentar delícias de outra ordem. Conhecer-se a si mesmo. Travar amizade
com um Rei. Eis do que o homem-exterior não é capaz.
Não
haverá salvação para o mundo se o homem não passar pelas primeiras moradas, que
são as do autoconhecimento. Conta-se que o Santo Cura d’ Ars recebeu este dom
em grau tão elevado que recomendava não o pedíssemos a Deus com a mesma
intensidade, tal a confusão e desespero que inspira. Com efeito, o homem
moderno não se dá conta da sua real miséria, de que toda a sua força é emprestada.
Gustavo
Corção, ao começar suas Confissões,
que possuem, a meu ver, uma das mais belas páginas inaugurais da língua
portuguesa (em que se lê a citação: “Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez
anos amarrado ao próprio cadáver?”), fala das prestidigitações da técnica e do
seu efeito inebriante. Em algum outro lugar, ele mesmo menciona uma máxima, se
não menciona, agasalha a ideia: “a
temperança gera riqueza; mas, a riqueza gera intemperança”.
E
eis, desvendado, o outro mal do homem moderno: a intemperança, o aburguesamento.
Esse mal afligira o mundo e a Igreja ao tempo da reforma protestante. Contra
ele soube lutar a sábia Teresa, iniciando outra reforma e devolvendo ao Carmelo
o espírito de pobreza e a sua primitiva austeridade. Ela que já havia padecido
de semelhante peste, a tibieza, chegando mesmo a enxergar, por uma visão, o seu
lugar no inferno.
Sim,
o coração dilatado de Teresa nos é necessário. Como uma mãe, ensina-nos a
rezar. É mestra em assuntos de oração. Fala-nos da fealdade e do deplorável
espetáculo de uma alma afastada de Deus. Teresa sacode-nos. Quer ela
devolver-nos o espírito de modéstia, da santa pobreza, inspirar-nos o rigor
primitivo. E, por que não dizer, quer ela devolver-nos o sentido de uma
autêntica feminilidade, apresentando-se sempre como modelo de uma obediência
perfeita a Deus e aos seus superiores.
O mundo de hoje
está excessivamente sentimental, feminino. Perdeu muito do senso prático e da
noção de autoridade que emanam do caráter masculino. Em razão de abusos havidos
no passado, descambou a civilização ocidental para o extremo oposto, quando o
ideal seria um meio-termo, o equilíbrio, a harmonia dos contrários.
Não é
sentimental o discurso ambientalista? Que dizer então do discurso abortista? Há
bases lógicas consistentes para o que defendem? E na causa de emancipação dos homossexuais? Não há
sempre a síndrome do coitadinho, um passar de mãos na cabeça, no âmago dessas
teorias? Não há nessas ideologias algo daninho de mãe superprotetora que ao
invés de corrigir aumenta os vícios dos filhos?
Os pais
pós-revolução sexual são pais envergonhados. Quase pedem desculpas por ser
pais. Sentem-se constrangidos ao exercer autoridade e exigir responsabilidade
dos filhos. Temos muitas mães, mas onde estão os pais? Pois o verdadeiro pai
não amolece diante das lamúrias dos filhos. Ele sabe que um certo rigor é amor.
Santa Teresa
tirou São José das sombras do esquecimento e exibiu ao mundo sua colossal
grandeza, sua incomensurável força. Ele, José, o humilde carpinteiro, que ensinou
o autor do sol a andar. Talvez Teresa queira hoje tirar os pais da penumbra,
devolver-lhes a dignidade, restituir-lhes ânimo. A doutora de Ávila, que é mãe
de muitos filhos, quer revelar aos pais e aos homens sua real importância, que
o mundo precisa deles, pois está muito feminino. Hoje ela quer restaurar a
correta compreensão do que seja o sereno exercício e o devido respeito à autoridade.
Paul Medeiros Krause