sexta-feira, 16 de agosto de 2013

TERESA E OS PAIS ENVERGONHADOS


Conheci um jovem que, no seu último dia de aula na oitava série, lá pelos fins dos anos 80, tomou o ônibus 8001, rumo ao BH Shopping, com vários colegas de turma que resolveram celebrar a amizade. Naquela época, este era o único shopping da capital mineira, pelo menos, o único importante.

No meio das conversas e risos, já entremeados de saudades, o rapaz, com alguns amigos, entrou na não mais existente “Hi-Fi”, que havia ali, perto da antiga praça de alimentação. A loja de discos, de aspecto muito moderno e refinado, possuía umas cabines extraordinárias em que se podia ouvir sozinho algum “LP” previamente escolhido.

Havia uma música que deixava aquele rapaz quase que em transe toda vez que a ouvia. Ele não tinha lá muito dinheiro, de modo que não lhe seria possível comprar o disco tão desejado. Apesar disso, estava consciente de que se apresentava diante dele uma oportunidade singular: a de poder ouvir algumas vezes os solos de Fender Stratocaster que quase o tiravam de si.

Então acorreu ele decidido a uma das estantes, tomou o disco “Dire Straits”, que leva o mesmo nome da banda, e resoluto entrou em uma daquelas cabines. A faixa escolhida era “Sultans of Swing”. Basta dizer que o moço escutou essa música um número tão grande de vezes que algum diligente empregado da “Hi-Fi” viu-se obrigado a desligar a energia da cabine. Constrangido, o nosso amigo teve de deixar a loja e o disco, fingindo que nada lhe acontecera.

Faço esta introdução, para relatar outra espécie de transe, uma espécie de microêxtase. Por causa dele, matei algumas aulas no secundário. Trazia comigo escritos de uma mulher apaixonada, de uma inteligência pouco comum, cheia de vida, de bom humor e de um extraordinário entusiasmo. Tais escritos, que sempre falavam de amor (ainda que da espécie mais rara), revezavam-se. Por vezes, eram “O Castelo Interior ou Moradas”, outras, “O Livro da Vida”, outras ainda, o “Caminho de Perfeição”. Esses livros punham-me em contato com um outro mundo, com um universo até então desconhecido.
 
Se há uma coisa que sempre me atraiu é uma espécie de intemperança no amor, um certo descomedimento ou expansão, como se um sentimento metódico, burocrático, meramente protocolar, fosse exatamente a antítese do amor verdadeiro.

Exatamente por isso, apaixonei-me por Santa Teresa de Jesus, ou de Ávila, logo na primeira página. Há nela um amor transbordante, espontâneo, aberto, despido de neuras e de escrúpulos. É um gênio, mas é simplesmente ela mesma. Apresenta-se tal como é. Suas palavras, como a de um número seleto de escritores, exalam fogo, parecem escritas com sangue. Não há como não se sentir inflamado.

De Santa Teresa pode-se dizer que como poucos soube unir o rigor do conteúdo à perfeição da forma, a profundidade e a clareza, a sutileza das figuras e a beleza dos exemplos. Que dizer, por exemplo, de como ela designa a imaginação: “a louca da casa”? Ou da metáfora do “bicho da seda”?

Este que lhe escreve, caro leitor, é um rapazinho de uniforme, que quer lhe falar dos seus gostos, da sua façanha na “Hi-Fi”, do seu amor por Teresa. Como não amar Teresa?

Lembro-me de que em seu programa diário, da sua tribuna radiofônica, o saudoso Dom João Resende Costa gostava de mencionar o livro de um autor protestante, René Füllop-Müller, intitulado “Os santos que abalaram o mundo”. Teresa está lá, neste livro, ao lado de Santo Antão, Santo Agostinho, São Francisco e Santo Inácio de Loyola. Ela é a única mulher. É a santa da transverberação, “a santa do êxtase”, também magistralmente retratada por Bernini. É a mulher do coração atravessado por uma seta do amor divino.

Teresa, doutora da Igreja, mestra de vida espiritual, tem muito a falar e a ensinar ao homem de hoje. Ao homem inquieto que se entope de barulho por todos os lados. Ao homem que teme o silêncio e liga a televisão já no café da manhã para não ter de enfrentar a si mesmo. Ao jovem que conhece os recursos do iPhone e do iPad mas nunca ouviu falar das potencialidades da alma.

O homem de hoje percorre o mundo inteiro. Vai à China, ao Japão, ao Himalaia. Gaba-se de verter umas Guinness na Irlanda (o que de fato deve ser uma experiência emocionante, não nego), de visitar a Torre Eiffel, de assistir ao show do Paul McCartney na Praça Vermelha. Tudo bem. Não há nisso qualquer problema. Mas o que mais importa é saber abrir as portas de um castelo (“a porta do castelo”– da alma – “é a oração”). Explorar um mundo escondido, mais belo, mais rico, interior. Invisível mas palpável. Conhecer belezas insuspeitadas e sublimes. Experimentar delícias de outra ordem. Conhecer-se a si mesmo. Travar amizade com um Rei. Eis do que o homem-exterior não é capaz.

Não haverá salvação para o mundo se o homem não passar pelas primeiras moradas, que são as do autoconhecimento. Conta-se que o Santo Cura d’ Ars recebeu este dom em grau tão elevado que recomendava não o pedíssemos a Deus com a mesma intensidade, tal a confusão e desespero que inspira. Com efeito, o homem moderno não se dá conta da sua real miséria, de que toda a sua força é emprestada.

Gustavo Corção, ao começar suas Confissões, que possuem, a meu ver, uma das mais belas páginas inaugurais da língua portuguesa (em que se lê a citação: “Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver?”), fala das prestidigitações da técnica e do seu efeito inebriante. Em algum outro lugar, ele mesmo menciona uma máxima, se não menciona, agasalha a ideia: “a temperança gera riqueza; mas, a riqueza gera intemperança”.
 
E eis, desvendado, o outro mal do homem moderno: a intemperança, o aburguesamento. Esse mal afligira o mundo e a Igreja ao tempo da reforma protestante. Contra ele soube lutar a sábia Teresa, iniciando outra reforma e devolvendo ao Carmelo o espírito de pobreza e a sua primitiva austeridade. Ela que já havia padecido de semelhante peste, a tibieza, chegando mesmo a enxergar, por uma visão, o seu lugar no inferno.

Sim, o coração dilatado de Teresa nos é necessário. Como uma mãe, ensina-nos a rezar. É mestra em assuntos de oração. Fala-nos da fealdade e do deplorável espetáculo de uma alma afastada de Deus. Teresa sacode-nos. Quer ela devolver-nos o espírito de modéstia, da santa pobreza, inspirar-nos o rigor primitivo. E, por que não dizer, quer ela devolver-nos o sentido de uma autêntica feminilidade, apresentando-se sempre como modelo de uma obediência perfeita a Deus e aos seus superiores.

O mundo de hoje está excessivamente sentimental, feminino. Perdeu muito do senso prático e da noção de autoridade que emanam do caráter masculino. Em razão de abusos havidos no passado, descambou a civilização ocidental para o extremo oposto, quando o ideal seria um meio-termo, o equilíbrio, a harmonia dos contrários.

Não é sentimental o discurso ambientalista? Que dizer então do discurso abortista? Há bases lógicas consistentes para o que defendem? E na causa de emancipação dos homossexuais? Não há sempre a síndrome do coitadinho, um passar de mãos na cabeça, no âmago dessas teorias? Não há nessas ideologias algo daninho de mãe superprotetora que ao invés de corrigir aumenta os vícios dos filhos?

Os pais pós-revolução sexual são pais envergonhados. Quase pedem desculpas por ser pais. Sentem-se constrangidos ao exercer autoridade e exigir responsabilidade dos filhos. Temos muitas mães, mas onde estão os pais? Pois o verdadeiro pai não amolece diante das lamúrias dos filhos. Ele sabe que um certo rigor é amor.

Santa Teresa tirou São José das sombras do esquecimento e exibiu ao mundo sua colossal grandeza, sua incomensurável força. Ele, José, o humilde carpinteiro, que ensinou o autor do sol a andar. Talvez Teresa queira hoje tirar os pais da penumbra, devolver-lhes a dignidade, restituir-lhes ânimo. A doutora de Ávila, que é mãe de muitos filhos, quer revelar aos pais e aos homens sua real importância, que o mundo precisa deles, pois está muito feminino. Hoje ela quer restaurar a correta compreensão do que seja o sereno exercício e o devido respeito à autoridade.

 

Paul Medeiros Krause

 

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