Um dos melhores livros que li
ultimamente, e em toda a minha vida, é “Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister”, de Goethe. O próprio título do livro, de grande beleza, já convida à
introspecção, suscita recordações, produzindo uma espécie de viagem do espírito.
Quantas impressões não nos grava na alma, não nos evoca à mente, a ideia de
“anos de aprendizado”? Não digo simplesmente “aprendizado”, mas a poética
recordação dos “anos de aprendizado”. Trata-se de algo como o “voltar para
casa”, tema recorrente na música e na literatura. Se a casa, a origem do
indivíduo são sagrados, também o são seus anos de aprendizado.
A narrativa do progresso espiritual de
Wilhelm revela a preocupação constante de Goethe com a formação plena do
indivíduo, com o desenvolvimento máximo das suas múltiplas capacidades e potencialidades.
Se o jovem Wilhelm ansiava formar-se plenamente, o Dr. Fausto do “Fausto: uma
tragédia”, principal obra do escritor alemão, também o aspirava com todas as suas
forças. Fausto, em sua obsessiva busca pelo saber completo, total, percebeu
frustrado, esmagado, que algo lhe faltava.
“Os anos de aprendizado” inauguram e representam
em grau máximo esta importante contribuição originalmente alemã para a
literatura universal: o “Bildungsroman”, o romance de formação.
De notar-se o caráter marcadamente
simbólico da narrativa das peripécias do jovem Wilhelm e da sua incursão pela
vida teatral. Destaca-se o seu contato com a secreta Sociedade da Torre, cujos
integrantes se incumbem da instrução de Wilhelm, sem que este o perceba, por
meio de encontros aparentemente casuais. O aprendiz possuía formadores, instrutores,
que se dedicavam a promover o seu crescimento e amadurecimento intelectual e
moral, e a introduzi-lo na Sociedade da Torre, sem que aquele se desse conta
disso. Aparentemente, o aprendiz estava sozinho; era governado pelo acaso.
Até o recebimento da carta de
aprendizado, Wilhelm, idealista e inexperiente, de coração bom e impulsivo, comete
muitos erros, muitos deles por ingenuidade e afoiteza. Mas o passado não é para
ele algo descartável ou desprezível. Fica nítido que os erros constituíram
parte importante, se não a principal, do seu processo de amadurecimento.
Quando chegam ao fim os anos de
aprendizado, Wilhelm dá-se conta de que a sua incursão no teatro não era mais
do que uma etapa. A carreira teatral, ao contrário do que sempre pensara, não
constituía a sua autêntica vocação. Mas é só a voz da maturidade que lhe revela
isso. Aquele período teatral, porém, fora necessário. Fora útil. Ter mergulhado
com todas as forças naquele ambiente favoreceu o desabrochar das suas múltiplas
capacidades então em estado de potência.
A convivência, e por que não dizer, a
amizade que travei com Wilhelm, essa simpática personagem, a sua companhia por
alguns meses – li o romance com bastante vagar, como é meu hábito e defeito –,
despertaram em mim algumas ideias.
No livro, o herói está em constante
viagem. Não será porém a nossa vida a mais venturosa e arriscada de todas as viagens?
As personagens enigmáticas que se
incumbiram da formação de Wilhelm também não existirão na vida de cada um?
Seria absurdo imaginar que cada uma das pessoas com quem convivemos ou nos
relacionamos, ainda que por fugidios instantes, nos deixam marcas indeléveis na
alma, contribuem e participam, mesmo inconscientemente, da nossa formação?
Mais ainda: a secreta Sociedade da Torre
não poderia, com razoável precisão, significar ou representar uma metáfora da
comunhão dos santos, do modo como somos auxiliados, socorridos e formados pelos
anjos e pelos santos, que permanecem velados, invisíveis, obscuros até o fim
dos nossos dias?
Não será que no dia do Juízo, esses celestes
instrutores e auxiliadores ocultos não se nos revelarão, e todos os obséquios
que nos foram prestados, cada dádiva, socorro ou lição, não brilharão ao sol do
meio dia, com a exata indicação de seu autor? Por exemplo: não será que alguns
obséquios nos chegaram por São Paulo, outros, por Santo Antônio, outros, pela
intercessão de uma avó falecida, outros, pela prece de uma alma do purgatório?
A vida toda são anos de aprendizado. Mas
talvez seja possível determinar período ou períodos em que essa marca, esse signo
do progresso, do amadurecimento, às vezes espinhoso, se revele de uma forma
mais evidente. Talvez haja um período de formação e, depois, uma fase do
trabalho, da execução da obra, da elaboração artística pelo artífice já
constituído. Sim, da elaboração artística, porque viver é uma delicadíssima
arte.
Sou da opinião de que a nossa vida, com
tudo o que a circunda, com todos os acontecimentos e vicissitudes que comporta,
é a matéria-prima nas mãos do artífice. Nós somos o artífice; a nossa liberdade
é o cinzel. Pelas nossas escolhas, moldamos, damos forma ao itinerário da nossa
existência. Esse elevado tipo de arte todos podem realizar. Todos podemos
elaborar uma obra-prima: a obra-prima das nossas vidas. Uma vida bem vivida é
um quadro belissimamente pintado, um filme magistralmente produzido, uma
sinfonia magnificamente executada. Não faltam cores. Não sobram cenas. Não há
tons e acordes desperdiçados. Tudo se aproveita. Não há atos isolados. Há uma
excepcional coerência entre o todo e as partes, e digo por quê: porque não
estamos soltos no mundo; temos mestres escondidos.
Recordando uma belíssima figura utilizada
por Gustavo Corção em “O desconcerto do mundo”, no fim dos tempos, no dia do
Juízo, haverá um magnífico Ofertório. E nesse Ofertório entregaremos ao Pai a
obra-prima das nossas vidas.
Paul Medeiros Krause
Tenho este livro, mas ainda não me detive sobre ele.
ResponderExcluirJá nas primeiras linhas percebe-se o brilhantismo do próprio.
Pena Goethe não ter muitos romances, ou eu não conheço muitos.
Caro Diego, obrigado por seu comentário. Infelizmente, também não conheço muita coisa de Goethe. Se não me engano, há outros romances, mas nunca os vi nas livrarias e não os li: "Os sofrimentos do jovem Werther" e "Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister".
ExcluirUm abraço,
Paul.
"Sou da opinião de que a nossa vida, com tudo o que a circunda, com todos os acontecimentos e vicissitudes que comporta, é a matéria-prima nas mãos do artífice. Nós somos o artífice; a nossa liberdade é o cinzel. Pelas nossas escolhas, moldamos, damos forma ao itinerário da nossa existência. Esse elevado tipo de arte todos podem realizar. Todos podemos elaborar uma obra-prima: a obra-prima das nossas vidas. Uma vida bem vivida é um quadro belissimamente pintado, um filme magistralmente produzido, uma sinfonia magnificamente executada. Não faltam cores. Não sobram cenas. Não há tons e acordes desperdiçados. Tudo se aproveita. Não há atos isolados. Há uma excepcional coerência entre o todo e as partes, e digo por quê: porque não estamos soltos no mundo; temos mestres escondidos."
ResponderExcluirSensacional Dr. Paul, fez muito sentido neste momento da minha vida.
Obrigado por compartilhar essa visão.
Abraço,
Eduardo
Obrigado, caro Eduardo, pelo seu comentário. Que bom que gostou!
ExcluirForte abraço,
Paul.